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A construção do fantasma1 2

Eduardo Vidal 3

A noção de fantasia ocupa um lugar central na psicanálise. A extensão da noção é efeito da orientação kleiniana que considera as fantasias inconscientes como parte constitutiva das relações de objeto. Para a escola kleiniana, o início do tratamento coincide com a transferência de uma fantasia inconsciente que deve ser interpretada precocemente. A situação analítica, nessa concepção, atualiza fantasias próprias de relações de objeto arcaicas, sendo a transferência reedição passível de interpretação. Esse modo de intervenção identifica o analista a um saber suposto, obstaculizando sua função de semblante de objeto no discurso analítico. Apesar de ser o objeto um conceito essencial na teoria kleiniana, é necessário estabelecer seu estatuto. Ele é abordado a partir do simbólico, portanto, redutível ao significante. Que essas fantasias, em suas raízes, escapem à linguagem (o tão difundido pré-verbal) não constitui impedimento para que a máquina interpretativa se desencadeie, decifrando os “conteúdos” e restituindo a significação. Essa abordagem teórica recai sobre a questão do final de análise, que não tem um tratamento homogêneo entre os kleinianos. Aceita-se que uma análise que chega a seu fim produza modificações na estrutura da fantasia (conteúdos e graus de distorção) e nas relações entre instâncias psíquicas: abandono da onipotência do eu e seus objetos, diminuição da severidade do supereu. Até aqui vão os limites da clínica kleiniana da fantasia inconsciente, sendo seu maior mérito impedir que a psicanálise transite pelos caminhos do eu autônomo e da adaptação.

O desenvolvimento kleiniano toma como ponto de partida o escrito de Freud “Fantasias históricas e sua relação com a bissexualidade”. Nesse trabalho, a fantasia é precursora do sintoma. A fantasia, o bem íntimo da personalidade, está soldada ao gozo masturbatório e escapa ao saber do Outro.

Afetada pelo recalque, torna-se inconsciente e se constitui em premissa para a formação do sintoma. A fantasia recalcada está portanto na causa do sintoma e o correlato clínico dessa teorização consiste em torná-la consciente, procurando remover o sintoma. Recuperar a fantasia que já está aí no inconsciente e colocá-la à disposição do saber do paciente, eis o objetivo da interpretação.

“Uma criança é batida” (1919) é outro tempo da clínica freudiana: o da construção de um fantasma4 em análise. Como abordar a questão da repetição e do gozo no fantasma? A construção em análise é uma forma de aproximação a esse real. Já em 1897 (cartas a Fliess 61, 69 e manuscrito L), Freud nos diz que o fantasma é uma reconstrução que inclui em sua estrutura as coisas vistas e ouvidas, porém não compreendidas pelo sujeito. O fantasma é sempre construção a posteriori (nachträglich) onde os restos das cenas primárias encontram um suporte. O que chamamos as coisas são resíduos subtraídos ao juízo”5. Esse real primeiro, excluído do significante, é matéria do fantasma. Produz-se uma passagem do acontecimento traumático real ao real indizível do trauma. Esse “encontro” com o fantasma é considerado momento inaugural da psicanálise: “no inconsciente não existe um ‘signo de realidade’, de modo que é impossível distinguir a verdade frente a uma ficção afetivamente carregada”6. A teoria analítica recorre à construção do fantasma para escrever o real impossível, separando assim a ficção do ilusório. O estabelecimento do fantasma fundamental é uma operação de construção da teoria.

Em “Além do princípio de prazer”, Freud marca três tempos da intervenção psicanalítica. O primeiro consiste em decifrar o inconsciente pela interpretação; no segundo, o objetivo é comunicar uma construção para vencer as resistências e recuperar uma lembrança. A pulsão de morte constitui outra clínica. O domínio da representação não é tudo – há algo que repete. O analista ocupa o lugar do objeto que a pulsão não cessa de perder. É a clínica do fantasma que se anuncia nesse terceiro tempo. Como pensá-lo em Freud? A construção tem a função de estabelecer um texto onde há algo impossível de ser dito. A construção não pretende dar uma resposta de significação ao desejo. Constrói-se em torno do faltante; um enigma é relançado. “Não pretendemos que uma construção individual seja mais que uma conjectura que espera exame, confirmação ou rejeição.” A verdade toca o real, as palavras faltam para dizer a verdade toda. A construção possibilita que “um fragmento de verdade histórica”7 se escreva. Há uma passagem à lógica do não todo, lógica que a segunda fase de “Uma criança é batida” explicita: “jamais teve existência real. Nunca é lembrada, e jamais conseguiu ter acesso à consciência. É uma construção da análise, mas nem por isso deixa de constituir uma necessidade”. A necessidade da construção se depreende da impossibilidade que o recalque primário instaura: algo que nunca teve acesso à consciência, à palavra, isto é, o que se constitui fora do campo da representação.

Lacan parte da necessidade lógica de estabelecer o fantasma fundamental na cura. Dessa maneira, separa-se da proliferação fantasmagórica kleiniana. Os fantasmas não estão no inconsciente à espera de interpretação. Na cura deve ser produzida a frase que articula o fantasma.

Inicialmente, na elaboração de Lacan, o fantasma se revela a partir de sua estrutura imaginária. Podemos destacar o tripé dessa estrutura: o caráter de espetáculo fundado sobre a imagem do corpo próprio; o objeto e o eu marcados para sempre pela alienação e a rivalidade; a inércia e a fixidez da captura pela imagem. O fantasma corresponde ao eixo a ¯ a’, eu-outro do esquema L, eixo que se interpõe e obstaculiza a direção da mensagem proveniente do Outro. O primeiro tempo de “Uma criança é batida” pode ser lido assim: O pai bate em outra criança, rival odiado. O sujeito assiste ao espetáculo com o olhar de gozo. A frase é: “O pai não quer essa outra criança, só quer a mim.”


O esquema R permite localizar o campo da realidade sustentado pelo fantasma. Esse campo, delimitado pelo simbólico e pelo imaginário, funciona como mediação entre o sujeito e o Outro.

O Nome-do-Pai é o significante que enlaça os três registros da experiência e instaura o campo da realidade. Intervém como Lei, barrando o desejo da mãe e produzindo, no imaginário, a significação fálica. É o que Freud propõe ao dizer que o fantasma é correlativo do complexo de Édipo, onde se constitui a dimensão da significação marcada pela castração.

A metáfora paterna introduz a regulação do gozo pelo Falo. Essa operação, no entanto, deixa restos: o supereu, lei insensata, mandato de gozo.

Em seu seminário dedicado às formações do inconsciente (1957-58), Lacan produz a escritura do fantasma: $<>a, no momento em que esclarece $ e S(%). $, sujeito sintomal, efeito intersticial da articulação significante inconsciente. S(%), significante que indica a falta que constitui o Outro. É dessa falta que o Outro é suposto desejo. Dele retorna ao sujeito a pergunta sobre o insondável do desejo: Che Vuoi? Mais além de seu discurso, do que diz, que é o que o Outro quer? Perguntas que conduzem o sujeito ao enigma do desejo. O fantasma é uma resposta: “O pai me bate”, que significa “O pai me ama”. É no fantasma que o sujeito se faz coisa, joguete da vontade desse Outro déspota e tirano. Com a abolição de sua autonomia, mostra no fantasma sua verdadeira condição: ser sujeitado ao desejo do Outro. O ser falante é apenas falta de ser que o significante instaura. A consistência, esse “pouco de realidade”, é trazida pelo outro elemento do fantasma: a. Na nota ao esquema R (1966), Lacan especifica o estatuto real de a, e desvela a borda topológica que sustenta o campo R da realidade. Essa borda é efeito do corte realizado sobre o plano projetivo, que desprende uma superfície unilátera de uma única borda: a banda de Moebius. O rombo “topo-lógico” representa a borda funcionante entre sujeito e Outro, articulação que instaura o fantasma e a realidade. Alienação ¯ separação são operações ininterruptas do ser falante, que determinam o sujeito a partir do Outro, e o objeto na interseção da falta entre Um e Outro. Os dois elementos se especificam heterogêneos em sua relação com o significante. Da Urverdrängung que afeta a Vorstellungsrepräsentanz, representado por um significante para um outro. O recalque originário fixa o representante da pulsão no inconsciente e, no mesmo ato, separa-se o objeto a, que designa o mais-de-gozar na satisfação pulsional. A exigência freudiana de manter a diferença entre o representante e a quantidade indica que a pulsão não é totalmente representável, princípio que leva a teorizar a pulsão de morte, sem representante, fundamento de toda pulsão. O masoquismo originário é o nome do gozo pulsional real, resto da divisão fundante. A frase do fantasma, construída na análise “eu sou batido pelo pai”, opera sobre o que “nunca é lembrado e jamais conseguiu ter acesso à consciência”, e situa a dimensão masoquista do gozo. A construção significante faz surgir o eu na frase, passando pela estrutura gramatical que se ordena no isso em termos de pulsão. O fantasma conjuga o gozo erógeno da pulsão com o pai obsceno e cruel que escapa à regulação da lei e da castração.

O axioma do fantasma implica uma virada essencial na posição do analista: de Outro, tesouro do significante, a a, objeto real que a pulsão contorna. O analista passa a oferecer-se como semblante de objeto, como resto a partir do qual o fantasma fundamental é estabelecido sob transferência. O analista opera com seu desejo “esse x da enunciação a cuja solução o analisante entrega seu ser”8. Essa solução não é outra senão a destituição subjetiva, o resto que causa a divisão e desaloja o analisante de seu fantasma. O analista foi atingido no seu ser; o des-ser se evidencia ao verificar-se a inexistência do sujeito suposto saber. Nessa passagem do analisante a analista há fulgor do agalma que reduz o analista a ser, apenas, um significante qualquer. A trajetória da análise operou uma radical mudança sobre a estrutura do saber, ressituando a questão da ignorância sobre a causa. Lacan escreve a ¯ $, a causa fazendo trabalhar a divisão; a, a causa sustentada por um saber em lugar da verdade. O imperativo freudiano Wo es war, soll ich werden configura a ética do dever ser da análise. Onde isso era, devo, como sujeito da divisão, do desejo, vir a ser. Onde isso era, deve o saber advir.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em 1, 2, 3, 4. Número, transferência, fantasma e direção da cura. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 1/4.

2 Trabalho apresentado no 3º Encuentro Internacional del Campo Freudiano, Buenos Aires, 18-22 de julho de 1984.

3 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

4 Reservamos o termo fantasma para o axioma fundamental da análise.

5 FREUD, S. “Projeto para uma psicologia científica”. In: Obras completas. vol. ,

6 ______ “Carta a Fliess – 69”. In: Obras completas. vol. ,

7 ______ “Construções em análise”. In: Obras completas. vol. ,

8 LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. In: Documentos para uma Escola. Revista da Escola Letra Freudiana, nº0. Rio de Janeiro, circulação interna.