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Um quarto de volta1

María Cristina Vidal 2

Este escrito versa sobre a estrutura dos quatro discursos e seu funcio­namento na clínica psicanalítica. As questões giram em torno da problemática do sintoma e do saber, como  o saber se articula no discurso da histérica e sua passagem, a partir de um quarto de volta, ao discurso do analista. A histeria funda a psicanáli­se: “o psicanalista no início só teve que escutar o que dizia a histérica.”3 Só há psi­canalista a partir da histérica. Seus sintomas e os enigmas que eles suscitam le­vam Freud a produzir uma subversão na estrutura do saber com a descoberta do saber inconsciente.

Lacan aborda o saber na formalização de estruturas quaternárias: são quatro discursos, quatro letras, quatro lugares que, pela rotação integral de noventa graus, escreve o laço social e o real da experiência analítica.


Há uma necessidade lógica de escrever aquilo que não pode ser dito, algo de real que só é abordável pela via do matema. Nessa estrutura discursiva, inerente ao processo de análise, destaca-se o modo de operar a passagem a analista com o problema crucial do término da transferência e da questão do final de análise.

Na escrita dos quatro discursos, sobre o fundamento do discurso analítico, Lacan abre uma nova dimensão na abordagem da clínica e do sintoma.Nos movimentos de discurso se comprova a finitude da experiência de análi­se. Nela se delimita um tempo de começo e um tempo de fim, momentos não cronológicos mas lógicos que, sob a incidência do real próprio da experiência só podem ser abordados a-posteriori.

O discurso da histérica responde a um momento peculiar da entrada do ser falante no processo da cura. Não deixa de nos surpreender que todo sujeito  que habita a linguagem, compelido pela associação livre, faz falar seu sintoma, isto é, “se histeriza”. Desde Freud se sabe que o sintoma impli­ca um processo de divisão do sujeito, uma solução de compromisso entre os pro­cessos inconscientes recalcados e o seu retorno pela via da substituição. Tal pro­cesso de substituição Lacan o formaliza com o matema da metáfora na estrutura da linguagem:


Esse algoritmo destaca uma posição primordial do significante e do significa­do como ordens distintas e separadas por uma barreira resistente à significação. O novo fundamento topológico do significante é a cadeia. A formalização fala de um significante mas sempre são necessários ao menos dois num encadeamento. O significado é sempre barrado e inconsciente. Pelo trabalho de substituição meta­fórica aparece algo do sentido do real da sexualidade. Passar pelo discurso histéri­co é a lei, a regra do jogo: “o que o analista institui é a histerização do discurso, ou seja, a introdução estrutural, em condições artificiais, do discurso da histérica.”4 É o discurso próprio do sujeito que constitui, na entrada em análise, seu sintoma no campo do Outro, isto é, na estrutura da transferência que é o tempo lógico da constituição do matema do sujeito suposto saber.

A transferência faz metáfora através da barra separadora do significante e do significado.


O S é o significante da transferência em relação ao significante qualquer (Sq) que é o analista enquanto função. Embaixo da barra estaria o significado, s, do sujeito dividido na entrada em análise que opera em adjacência ao saber incons­ciente. É função do analista oferecer-se como significante para que uma suposição possa estabelecer-se, suposição que é resposta à hiância do ato inaugural. O analista é aquele que tem um saber sobre sua experiência, quer dizer, sabe de saída que na saída do processo analítico há salto, há vazio, impossibilidade. Porque saber disso,  está em condições estruturais de possibilitar que o artefato da transferên­cia, enquanto saber suposto do significante no inconsciente, faça operar um su­jeito destinado a sua destituição no final do processo de cura.

O discurso histérico, ao fazer funcionar o sujeito do sintoma como agente no processo de início de uma análise, destaca uma peculiar articulação entre o sa­ber e a verdade. O sintoma se funda na relação do sujeito ao saber. O sujeito do inconsciente é aquele definido, desde Freud, por “uma relação nova, original, de um sujeito a um não saber”5, a uma recusa ao saber sobre o sexo que determina sua divisão. No neurótico (histérico ou obsessivo) há um não querer saber sobre a castração, o que proporciona consistência imaginária do saber sobre seu sintoma.

A questão do sujeito ancorado nesse discurso é animar o Outro a produzir um saber, fazê-lo trabalhar. Esse saber, no entanto, não lhe serve pois está aliena­do ao Outro em posição de mestria e de ideal, possuidor de um saber ao qual a histérica se subtrai. Tal saber, portanto, não retorna como saber inconsciente, ou seja, aquele que diz algo de uma verdade que não se sabe. É um saber marca­do pela impotência que protege o sujeito da impossibilidade do real. É impotente enquanto ignora o impossível de um saber sobre a verdade. O paradoxo é que, ao mesmo tempo em que está na posição de dependência imaginária ao saber do Outro, o castra na medida em queesse saber se demonstra impotente para agir sobre seu desejo.


A verdade, nesse discurso, não está no saber inconsciente, mas no gozo que sustenta sua divisão, seu sintoma, seu sofrimento. O sujeito, sob o efeito da linguagem, padece. Da castração ele extrai gozo que se cristaliza num discurso de queixa e de ressentimento: “Eu não consigo nada, a análise não adianta, não tenho jeito.” São momentos de extrema dificuldade numa cura, quando um obs­táculo essencial se presentifica: “não quero saber nada disso... enquanto isso goza.” Se goza não sabe. É o que Freud descobre em suas primeiras histéricas. Está aí a paralisia de Elizabeth Von R., cujo sintoma é sustentado pelo gozo recal­cado: “o que a histérica reprime, e na verdade promove, é esse ponto ao infinito do gozo como absoluto.”6 Ela abre ao desejo de saber, que supõe estar no ho­mem, mas inconscientemente só acredita no saber da mulher. Também aí está Dora, pois, para ela, é “A Mulher” que poderia saber o que é preciso para o gozo do homem. Tanto a procura de “A Mulher” quanto a do Mestre se fundamentam em um ponto co­mum: são aqueles que detém o saber, e, por isso, têm o privilégio de ocupar o lu­gar de Outro absoluto.

Poderíamos considerar aqui um ponto de articulação e talvez de interseção entre o matema desse discurso e o fantasma da histérica que Lacan aborda no Seminário A transferência: î & A, no qual o a é o objeto substitutivo ou metafórico colocado sobre algo que está escondido, a saber, o -„, sua própria castração imaginária. O î está no lugar do $, o sujeito dividido na fórmula do fantasma fundamental, pois é essa a verdade do sujeito histérico:

O que suporta a histérica é que o Outro, que é o homem, saiba que objeto pre­cioso ela se torna no contexto do discurso. E, depois de tudo, não é isso o fundamento mesmo da experiência analítica.7

A questão é o analista não cair na armadilha da histérica e ocupar esse lugar do saber, ficar cativo pelo saber. Lacan adverte que o analista deve ser dupe, tolo, e, enquanto tolo, possibilitar a rotação de discurso – ou seja, esse quarto de volta que é a colocação em ato do discurso do analista. Esse ato é a interpretação que permite passar da impotência ao confronto com a impossibilidade. Essa mu­dança de discurso se faz a partir do campo do Outro onde o sujeito encontra o -1 que não responde ao lugar de mestria. Lacan não se deixou enganar pelo brilho do saber e, desde o começo, colocou a posição do analista do lado da ignorância douta, uma ignorância calculada, um semblante de ignorância que justamente não se deve entender como ausência de saber:

o fruto positivo da revelação da ignorância é o não saber que não é uma nega­ção de saber mas sua forma mais elaborada [...] o analista deve reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância.8

A partir dessa posição, o analista pode operar com o ato que, inserido na ordem da certeza e não do conhecimento, teria como efeito produzir um outro saber em análise. Haveria uma passagem de um desejo de saber a uma interrogação sobre seu desejo:

se há algo que a psicanálise deveria forçar-nos a manter obcecadamente, é que o desejo de saber não tem nenhuma relação com o saber. O desejo de sa­ber não é o que conduz ao saber.9

O desejo de saber coloca a análise num impasse. Sair dele pela via do ato é fa­zer operar o discurso do analista...


Ou seja, o quarto de volta a partir do qual o a passa a ocupar o lugar de agen­te e o saber fica no lugar da verdade. O saber analítico é aquele marcado pela im­possibilidade de alcançar o todo. A posição do analista como semblante de a, semblante de causa, é a mais conveniente para interrogar o saber no que se refe­re à verdade. É desse lugar que interpela o sujeito. O discurso do analista, ao tocar o impossível, articula a fórmula lacaniana: “não há relação sexual, relação que pos­sa ser escrita [...] Essa relação é impossível de se escrever, ou seja, é nisso que ela não é afirmável, mas da mesma forma não é refutável: a título de verdade.”10 A presentificação do discurso do analista na cura produz na histérica a possibilidade de mudança em sua posição frente ao sexo, frente ao significante fálico. Recoloca em análise a questão da mulher: que quer a mulher? Um analista. Ou seja, aquele que, da posição de semblante de objeto causa, a remete à pergunta sobre o desejo, o Che Vuoi? Esta retorna ao sujeito como um enigma sobre o sexo. Na po­sição mulher há uma queda do universal. Ela é não-toda em relação ao falo.

A direção de uma cura está marcada por este quarto de volta, essa operação de corte do analista, seu ato, que determina o percurso do sujeito histérico à questão mulher, ao S(%), do gozo ao desejo.

Deve-se pensar a posição de Lacan como rotação de um quarto de volta em relação à clínica freudiana, que tem como fundamento de sua prática a constru­ção de um saber. Freud toma o Nome-do-Pai, o complexo de Édipo, a sexualidade infantil como eixos teóricos para avançar em direção ao sintoma e ao deciframento do saber inconsciente. A incidência do saber no real da ciência, condição ne­cessária mas não suficiente, obriga Freud a tentar escrever seu projeto no discur­so da ciência. O “erro” com suas histéricas provinha dessa posição. Elas respon­diam muito bem ao mestre animando-o com seu sintoma e um saber que, para elas, era absolutamente indiferente: “o que a ciência deve à estrutura histérica, o romance de Freud, são seus amores com a verdade.”11 Há um ponto em que Freud não erra: é com o real, a saber:

a matemática de Freud. Isso que está determina­do segundo a lógica de seu discurso. Sua errância. Quer dizer, o modo que ele tentava tornar esse discurso analítico adequado ao discurso científico. Era isso seu Erre. É isso que o tinha,  eu não posso dizer impedido, enfim,  de fazer a ma­temática, pois a matemática ele a fazia assim, seria preciso um segundo passo para, em seguida, poder inscreve-la.12

Esse segundo passo é o de Lacan e sua escrita. O analista deve ser suficientemente tolo para poder errar, isto é, agir na errância.

Lacan propõe uma prática que se funde na ex-sistência do inconsciente: do sujeito que se concebia agente do discurso ao sujeito enquanto afetado pela cau­sa que ex-siste a ele. Eis aí o quarto de volta: o objeto que, por uma sorte de mira­gem, obturava seu fantasma, ex-siste ao significante e à imagem. Desse lugar sem complemento, desse fora provoca-se a torção que é a própria superfície de Moebius. Nesse quarto de volta, nessa torção, há chances de passagem a analis­ta com a responsabilidade que esse ato supõe. O analista só pode autorizar-se de si próprio, quer dizer, do ato que o constitui na sua própria experiência de análise. Entre o sujeito e o saber há uma superfície modificada. Trata-se de uma linha de duas voltas provocada pela torção irredutível do objeto. É uma margem, um lito­ral entre o saber e o gozo. O discurso da ciência faz do saber do real o suporte de sua formalização. Para que o inconsciente pudesse existir como discurso foi ne­cessário o lugar que a ciência destinou ao saber. Porém, a psicanálise desta­ca o saber do real e opera com restos de saber que a ciência rejeita. O objeto a, construído por Lacan, ex-siste ao discurso da ciência e, dessa ex-sistência, causa o inconsciente. Essa incidência do objeto a na causação do desejo tem no passe um dispositivo de verificação. É da pressa que o objeto determina, com sua que­da do saber, que uma análise se conclua em ato. Esse instante passa. É função do analis­ta transmitir o particular desse instante em que o objeto terá causado um ponto inessencial no saber: seu des-ser.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em Do sintoma ...ao sinthoma. Revista da Escola Letra Freudiana, nº17/18.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3 LACAN, J. Le séminaire, livre XVII, L' Envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, p. 34.

4 Ibidem, p. 35.

5 LACAN, J. Seminário XII, Les problèmes cruciaux pour la psychanalyse, inédito, lição de 09/06/65.

6 ______ Seminário XVI, D'un Autre à 1'autre, inédito.

7 ______ Le Séminaire, livre XVII, op.cit., p. 37.

8 ______ “Variantes de la cure-type”. In: Écrits. Paris: Seuil, p. 358.

9 ______ Le Séminaire, livre XVII, op.cit., p. 23.

10 ______ “Note Italienne”. In: Petits écrits et conférences, p. 337.

11 Ibidem, p. 335.

12 LACAN, J. Seminário Les non-dupes errent, inédito, lição de 20/11/73.

Bibliografia:

LACAN, J. Le Séminaire, livre VIII, Le Transfert. Paris: Seuil.

“Proposição de 9 de outubro de 1967”. In: Documentos para uma Escola, nº 0, Revista da Escola Letra Freudiana (circulação interna), Rio de Janeiro.