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O masoquismo na teoria de Freud1

Renato R. P. de Carvalho
Rossely S. M. Peres
2

Se não se pode avançar voando, bom é progredir coxeando,
Pois está escrito que não é pecado coxear.3

Seguindo o desenvolvimento do pensamento de Freud sobre o masoquismo, observamos como aí se articula a posição do sujeito em relação à castração, à sexualidade e ao gozo. Trata-se da sexualidade do sujeito enquanto sujeitado à cadeia significante, enquanto ser falante. Daí decorre que sua satisfação seja de ordem pulsional, parcial, não homogênea e enigmática. Por uma questão de estrutura, o sujeito vem a se colocar na posição de objeto, possibilitando a ocultação da falta que o constitui. Por uma paradoxal ligação do prazer à dor, vem ultrapassar esse ponto limite, além do prazer, que instaura a dimensão do gozo.

1. Primeiras referências – 1900/1905

As primeiras referências ao masoquismo encontram-se na “Interpretação dos sonhos” (1900), como traço e impulso no contexto do sonho, já articuladas à questão da sexualidade, da punição, da repetição e da inversão. Desde os primórdios, Freud emprega esses significantes que serão retomados e mantidos ao longo de sua teorização.

Na primeira utilização que faz do termo, ele narra o sonho de uma noiva: “Eu arranjo o centro de uma mesa com flores para um aniversário.”4 Através das associações da paciente, identifica nos seus pensamentos sobre a “violência da defloração” um “traço masoquista de caráter”.

Na outra referência, Freud narra um sonho repetitivo “de trabalhar no laboratório, de efetuar análises e de ter diversas experiências ali”.5 Este sonho é marcado pela reincidência de uma situação desagradável. São os “impulsos masoquistas da mente” que transformaram por inversão uma “fantasia exageradamente ambiciosa” em um sonho de punição. Concomitante a essa situação desagradável, Freud se defronta nesse sonho com a possibilidade de escolha entre várias mulheres. Desde as primeiras referências, o masoquismo e a mulher já estão ligados no trabalho do sonho. As associações levam ao impossível de representar, àquilo que não se pode significar: o sexo feminino.

O masoquismo como fantasma já se anuncia em “Psicopatologia da vida cotidiana” (1901), onde fantasias histéricas de crueldades sexuais são comparadas aos delírios dos paranoicos e às encenações dos perversos para a satisfação real ou imaginária de seus desejos sexuais. Essa posição foi retomada em 1908, no artigo “Fantasias histéri­cas e sua relação com a bissexualidade”.

Com o texto de 1905, “Personagens psicopáticos no palco”, Freud trata da “finali­dade” catártica do teatro trágico – mediante a qual há um acesso ao prazer e “fruição” na vida emocional. No início dessa obra, chiste e teatro são apontados como condições de gozo, o chiste pela via da atividade intelectual e o teatro pela via da identificação imaginária ao herói. Há uma catarse do afeto, e o gozo advém do alívio resultante da descarga da tensão emocional e da excitação sexual conjunta. Freud assinala a presença da excitação sexual como “subproduto”, um ganho adicional concomitante ao desper­tar de um afeto.

O teatro carrega a marca de sua herança, a dos ritos sacrificiais no culto dos deuses. Seus heróis lutam contra algo da ordem do divino. Leva a um prazer que joga com a aflição de um ser fraco desafiando o poder divino, propiciando, portanto, uma satisfação masoquista. Mais masoquista ainda, se considerarmos que essa luta contra o divino ou o destino está fadada à derrota. O sofrimento é o tema do teatro, diz Freud, e com esse sofrimento promete um deleite à sua audiência.

2. Masoquismo e pulsão sexual - 1905/1914

Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de 1905, surge a noção de masoquismo como conexão da crueldade com a pulsão sexual, a dor como possibilidade de prazer e a coexistência das formas passiva e ativa no mesmo indivíduo. A pele é apontada como a “zona erógena par excellence”; superfície onde o látego virá deixar uma marca, um traço da ordem do contável, como aponta Lacan, por onde esse gozo encontra a possibilidade de limite.

No primeiro desses ensaios é introduzido o conceito de masoquismo como um dos componentes da pulsão sexual. Freud trata da supervalorização do objeto sexual que se estende do corpo ao campo do psiquismo. Fala mesmo de certa debilidade do juízo, já que no objeto sexual só se encontram perfeições, e usa a expressão “creduli­dade do amor”. A docilidade do hipnotizado frente ao hipnotizador faz “suspeitar de que a essência da hipnose está na fixação inconsciente da libido sobre a pessoa do hipnotizador (por intermédio dos componentes masoquistas da pulsão sexual)”.6 Esses componentes estão ligados à relação do sujeito ao Outro idealizado, tese retomada em “Psicologia das massas e análise do eu”.

O masoquismo é caracterizado por abrigar atitudes passivas na vida erótica. Em situação extrema, essa passividade está aliada à satisfação associada ao sofrimento infligido pelo objeto sexual. Ao sadismo estaria ligada a posição ativa. O prazer é associado à “atividade de causar dor”. Sadismo/masoquismo seria um par antitético, ligando prazer e crueldade, onde passividade e atividade estariam relacionados à bissexualidade e, portanto, presentes na mesma pessoa: “Um sádico é sempre, ao mesmo tempo, um masoquista.”7

Nesse texto, Freud já levanta a hipótese do masoquismo ser um “fenômeno originário” e aponta o complexo de castração e o sentimento de culpa como alguns dos fatores responsáveis pela fixação da “atitude sexual passiva original”. No entanto, define-se por considerá-lo “um prosseguimento do sadismo voltado para a própria pessoa, a qual, de início, se passa por objeto sexual”.8

O surgimento do outro é necessário para que apareça a estrutura da pulsão. No entanto, este outro, objeto, é contornado pela pulsão, que atinge o seu alvo apenas completando o seu circuito em um retorno. O objeto, como diz Freud, é qualquer um, é um vazio, incapaz de satisfazer a pulsão que é sempre parcial e busca apenas eliminar a excitação da zona erógena correspondente. No caso do masoquismo e do sadismo, a zona erógena é a pele, e o que o masoquista busca é “designar o retorno, a inserção no corpo próprio, do começo e do fim da pulsão”.9 A relação ao outro se estabelece na parcialidade, e este outro da estrutura pulsional funciona como suporte, apoio, dessa relação.

Freud caracteriza o corpo como fragmentado, composto por zonas erógenas que são as fontes de excitação pulsionais. A pulsão é conceituada na fronteira do psíquico e do somático, isto é, entre o significante e o real. A satisfação masoquista resulta do que sobra, do que se perde nesse encontro.

Em 1909, Freud faz um acréscimo à “Interpretação dos sonhos” onde se refere a masoquistas “mentais”, sujeitos que buscam prazer na tortura mental e na humilhação. É uma antecipação do que virá a desenvolver como masoquismo moral em 1924.

3. Fantasma masoquista e neurose – 1914/1920

Em seu caso clínico “História de uma neurose infantil”, de 1914, Freud introduz o fantasma como suporte do desejo na neurose. Apresenta como fantasma do paciente “meninos sendo castigados e surrados; especialmente, levam pancadas no pênis”.10 Comenta que o sadismo se voltou contra ele próprio, transformando-se em masoquismo. Esta transformação se deu pela atuação do sentimento de culpa ligado à masturbação e pelo temor da castração. Freud observa que as tendências masoquistas do menino surgem como resultado da troca de objeto sexual, da babá pelo pai. Este passa­ de objeto de identificação narcísica a objeto de uma corrente sexual passiva na fase sádico-anal. A identificação deu origem a fins sádico-ativos em relação à babá, enquanto em relação ao pai, como objeto, os propósitos eram masoquistas. A criança que provoca um castigo procura “pacificar seu sentimento de culpa e satisfazer sua tendência sexual masoquis­ta”.11 Ao longo de todo o texto, Freud enfatiza a existência das duas correntes: sádica, correlativa à identificação ao pai, e masoquista, tendo o pai como objeto.

Freud mostra também nesse texto a relação estrita existente entre a neurose obsessiva e o masoquismo. Há nessa neurose duas correntes: uma sexual masoquista, dominante, e outra homossexual recalcada. O eu se empenha, histericamente, em rejeitar ambas. Essa condição inicial transformou-se em neurose obsessiva do seguinte modo: a corrente homossexual recalcada deu origem à fobia de lobos pela substituição totêmica do pai e, a seguir, esta fase se interrompeu devido às novas relações com o pai, surgindo uma fase de devoção religiosa. O menino identificou-se com Cristo, o que foi facilitado devido à sua data de nascimento. Cristo era o substituto do pai, a quem ele podia amar agora sem nenhuma culpa. A impulsão masoquista foi sublimada na história da paixão de Cristo, que por ordem de seu divino pai se deixara maltratar e sacrificar. A religião proporcionou satisfação e sublimação, desvio dos processos sensuais para os espirituais.

Freud sublinha a divisão – spaltung – em três níveis diferentes: homossexual, no inconsciente; canibalismo, na neurose; e uma atitude masoquista mais primitiva e dominante. O homossexualismo inconsciente se manifestou na religiosidade (amor a Cristo como substituto do pai); o canibalismo, na sua fobia de lobos (medo de ser devorado); e o masoquismo, nos seus pedidos de castigo e, de forma sublimada, na história da paixão de Cristo.

No artigo de 1915, “As pulsões e seus destinos”, retomando o conceito de pulsão, Freud atribui-lhe uma “exigência de trabalho” consequente de sua vinculação ao somático. Dos quatro destinos possíveis da pulsão, a transformação no contrário e a orientação contra a própria pessoa são os que se relacionam com a questão do masoquismo. A transformação coloca este último como par antitético do sadismo, onde o fim ativo “atormentar” passa ao passivo “ser atormentado”. O masoquismo é visto como o sadismo dirigido ao próprio eu, onde há uma mudança de objeto, embora mantendo o mesmo fim ativo. “O masoquista partilha o gozo da fúria que se abate sobre sua pessoa.”12

A transformação do sadismo em masoquismo se dá em três tempos: sadismo como exercício de violência contra outra pessoa, tomada como objeto; substituição do objeto pelo eu do indivíduo e mudança de finalidade pulsional ativa para passiva; e, finalmente, uma terceira pessoa é buscada como objeto para assumir o papel de sujeito, tendo em vista a alteração que ocorreu na finalidade pulsional.  Comparando a neurose obsessiva ao masoquismo, Freud assinala que aquela chega apenas ao segundo tempo – o desejo de atormentar se converte em auto-tormento – e o verbo passa da voz ativa para a voz reflexiva média.­ Freud volta a questionar-se: “não parece existir um masoquismo originário que não se engendre do sadismo da maneira descrita.”13 Reaparece nesse texto a ligação do termo masoquismo com o significante originário, já apontada nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”.

No masoquismo, experimentar dor aponta como sensações dolorosas e desprazerosas se estendem à excitação sexual, levando o sujeito a aceitar de bom grado “o desprazer da dor”. Freud observa que só depois de que o gozo masoquista da dor se instala é que, num segundo tempo, o gozo sádico de causar dor vai poder surgir. Dessa dor goza também o sujeito, através da identificação com o objeto passivo. O sujeito goza não com a dor, mas com a excitação sexual concomitante.

Embora Freud coloque o sadismo como originário, é só num retorno pulsional a partir do gozo masoquista que o sujeito poderá gozar na posição sádica. Essa é, evidentemente, uma contradição que faz obstáculo no caminho da teorização e que o levará a uma revisão em 1924. Essa contradição está bem explicitada no seguinte texto: “O gozo da dor seria, assim, uma finalidade originalmente masoquista, mas que só pôde tornar-se uma finalidade pulsional em alguém que era originalmente sádico.”14

Outra observação interessante se refere à satisfação do sentimento de culpa no espancamento pelo pai motivada pelo masoquismo. O castigo apazigua a consciência de culpa e satisfaz a tendência sexual masoquista.

O artigo de Freud “Bate-se em uma criança”, de 1919, vincula estreitamente a questão do masoquismo com o pai. Além de desenvolver as relações entre sentimento de culpa e fantasma de espancamento pelo pai, como suporte do desejo, Freud faz uma distinção entre a posição subjetiva de homens e de mulheres em relação ao fantasma masoquista.

O fantasma de espancamento apresenta três fases, duas conscientes e uma inconsciente, que é uma construção da análise.­ O fantasma inconsciente das meninas, “estou sendo espancada pelo meu pai”, tem um caráter indiscutivelmente masoquista. É o resultado do sentimento de culpa da menina pelo fantasma do período de amor incestuoso: “Ele (o meu pai) só ama a mim e não à outra criança, pois está batendo nela”. Essa transformação do fantasma em masoquista não se deve somente ao sentimento de culpa, mas também a um impulso de amor. “O meu pai me ama”, que tinha um sentido genital, converte-se em “o meu pai está me batendo” através de um processo de regressão à organização pré-genital, anal sádica, da vida sexual. Há, portanto, uma convergência do sentimento de culpa e do amor sexual. O fantasma masoquista resultante é não só o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto dessa relação. E é dessa última fonte que surge a excitação libidinal ligada ao fantasma.

Em textos anteriores (“As pulsões e seus destinos” e “História de uma neurose infantil”) Freud havia afirmado que o castigo apazigua a consciência de culpa e satisfaz a tendência sexual masoquista, sem explicar a origem desta última. Em “Bate-se em uma criança” ele esclarece a questão, mostrando que o fantasma suporta o desejo como substituto da relação edipiana interditada, propiciando a excitação libidinal associada ao castigo. Pode-se portanto entender a paradoxal associação da dor com a excitação sexual. Esta, segundo Freud, é a essência do masoquismo.

O fantasma masoquista do neurótico permanece no fundo, retirando uma parcela da excitação sexual. Já na perversão, ele consome toda a vida sexual do sujeito. O fantasma de espancamento e outras fixações perversas análogas “seriam apenas precipitados do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer”.15 A gênese do masoquismo continua obscura e não parece ser manifestação de uma pulsão primária. Volta a afirmar que o mais provável é que se origine “por uma reversão do sadismo em direção à própria pessoa, ou seja, por regressão do objeto ao eu”.16 Afirma, no entanto, a existência de pulsões passivas, principalmente nas mulheres, mas a passividade não é a totalidade do masoquismo; o desprazer também é uma característica sua e constitui um surpreendente acompanhamento para a satisfação de uma pulsão.­ A transformação do sadismo em masoquismo dar-se-ia pela influência

da cons­ciência de culpa que participa do ato do recalque. Então o recalque se exterioriza aqui em três classes de efeitos: torna inconsciente o resultado da organização genital, obriga esta última a regredir ao estádio sádico anal e muda seu sadismo em masoquismo passivo, em certo sentido, de novo, narcisista.17

Não se pode fazer analogia entre masoquistas do sexo masculino e do sexo feminino. Nos fantasmas masoquistas, os homens, invariavelmente, aparecem no papel de mulher. A atitude masoquista sempre coincide com uma atitude feminina. A forma original do fantasma em ambos os sexos é: “sou amado pelo meu pai.” Nos meninos, no entanto, é transformado no fantasma consciente: “estou sendo espancado pela minha mãe.” Não há uma relação paralela entre os fantasmas de homens e mulheres. O ponto comum é a ligação incestuosa com o pai.

No fantasma consciente da terceira fase, a menina mantém a figura do pai como aquele que bate, mas troca o sexo da criança que apanha. Já o menino troca o sexo do agressor, que passa a ser a mãe, e mantém o sexo da pessoa que está apanhando. No caso do menino a situação é, em todas as fases, masoquista, e mantém maior afinidade com o fantasma original, com seu significado genital. “O menino se livra do seu homossexualismo recalcando e remodelando o fantasma inconsciente; o curioso acerca de seu posterior fantasma consciente é que este tem como conteúdo uma atitude feminina sem uma escolha homossexual de objeto.”18 A menina também escapa das exigências da vida amorosa: “Faz a fantasia de que é homem, sem se tornar ativa à maneira masculina, e agora somente assiste como espectadora ao ato que toma o lugar de um ato sexual.”19

4. Masoquismo, gozo e pulsão de morte – 1920/1924

Dos fatos de sua clínica, Freud extrai a observação de que os dois princípios – prazer e realidade - que regem o aparelho psíquico não dão conta de um excesso que, como resto, tensão não assimilável, insiste e configura o que ele vem a formular, em “Além do princípio de prazer”, de 1920, como compulsão à repetição.

Freud se indaga como é possível que situações desagradáveis se repitam num aparelho que tende para a homeostase, e concebe a existência de situações que se passam fora do registro do prazer. Essas situações são analisadas no jogo infantil, na neurose traumática e na transferência.

Observa um jogo infantil onde a criança, ao fazer desaparecer e aparecer um objeto, repete a situação dolorosa do afastamento da mãe. Esses movimentos são acompanhados de expressões verbais – os ­advérbios fort e da – marcando um momento de desaparição e aparição do objeto. Freud percebe que a repetição desse jogo permite à criança sair de uma posição passiva e assumir um papel ativo na situação dolorosa; colocá-la em palavra já era um intento de dominá-la.

Os sonhos, na neurose traumática, atualizam a situação traumática repetidamente  questionam a concepção do sonho como realização alucinatória de desejo. Freud aponta aí a possibilidade desses sonhos estarem ligados às “misteriosas tendências masoquistas do eu”.20

No processo da cura, na transferência, o paciente é levado a repetir situações penosas ao invés de rememorá-las. Freud passa a conceber a transferência, também, como ponto de resistência e a serviço da compulsão à repetição.

Esses fatos levaram-no a supor a existência da compulsão à repetição na vida psíquica, num além do princípio de prazer, a conceber que a pulsão tende a repetir um estado antigo; que há algo de “demoníaco” em toda pulsão, cujo modelo é a pulsão de morte.

Em “Além do princípio de prazer”, Freud refere-se à pulsão de morte como aquela que tende a levar o ser a um estado anterior à existência, acentuando seu caráter conservador e mesmo regressivo. Segundo ele, há algo de “demoníaco” em toda pulsão, cujo modelo é a pulsão de morte. ­No outro polo está Eros como agente de união e ligação, que atuaria amalgamado à pulsão de morte. Na tese de 1920 discute-se exaustivamente o sentido da vida. Ao colocar a pulsão de morte em posição paradigmática, Freud questiona se o próprio da vida é levar o vivente para a morte. Resgata, então, que o sentido da vida seria propiciar a cada organismo “seu peculiar caminho para a morte”.21

A pulsão como tensão não cessa de procurar sua total satisfação. O caminho regressivo é deslocado pelas resistências que mantêm o recalque. O caminho evolutivo é o que permanece livre e o trecho do Fausto, “tende, indomável sempre para adiante”, é citado por Freud para dar conta do incessante trabalho pulsional.

Nesse contexto, ele analisa masoquismo e sadismo. O masoquismo poderia ser originário, uma vez que a pulsão parte do eu para o objeto. Assim, a volta da pulsão contra o próprio eu poderia ser o retorno a uma fase anterior dela mesma. O sadismo é, por hipótese, pensado como uma pulsão de morte dirigida para o objeto por ação da libido do eu. Só é por isso perceptível no nível do objeto. Sadismo e masoquismo são componentes pulsionais que no sujeito atestam a marca do Outro, a partir do qual o princípio de prazer se exerce como limite a uma satisfação que a pulsão não cessa de procurar.

Em “O Eu e o Isso”, de 1923, Freud retoma as questões já tratadas e reelabora-as à luz de sua segunda tópica. As noções de Édipo, castração e supereu, em sua solidariedade, apontam novo entendimento à questão do masoquismo. A base do supereu seria a identificação ao pai que, ao cair como objeto erótico no final do complexo de Édipo, acarreta a dissociação das pulsões. A pulsão de morte se manifestaria parcialmente em sua dimensão de tendência à agressão e destruição. Dessa dissociação, e da ­identifica­ção ao pai tirano, o supereu extrai o caráter “duro e cruel do imperioso dever-ser”.22

O supereu tem sua gênese em impressões auditivas, herança que lhe vem de ser originário do eu, embora sua energia lhe venha do isso. A força dessa voz interior marca o rigor do indivíduo consigo mesmo. Voz, uma das formas do objeto a, ligada à constituição do sujeito no lugar do Outro: daí o seu vínculo estreito e primário com o supereu.

Da identificação do sujeito com um outro, anteriormente objeto erótico, fica o sentimento de culpa que permanece como único resto da relação erótica abandonada, difícil de ser percebido, conforme assinala Freud. Nesse contexto, conceitua a reação terapêutica negativa como a resistência de certos doentes à cura em virtude de um sentimento “inconsciente de culpa”. A doença seria o castigo merecido e a cra, um perigo e uma perda de satisfação. No quadro da melancolia, quadro extremo, Freud explicita o quanto é encarniçada a luta do supereu contra o eu, que frequentemente sucumbe diante desse tirano ou refugia-se na mania.

5. Masoquismo erógeno, feminino e moral - 1924/1938

Em “O problema econômico do masoquismo”, de 1924, Freud examina a contradição entre a existência de um princípio de prazer e o fato da dor e do desprazer poderem vir a ser um fim em si mesmo. Distingue, além do masoquismo erógeno, o feminino e o moral.

No masoquismo feminino encontramos o fantasma do homem no quadro da perversão. O sujeito monta cenas onde se vê amordaçado, maltratado, amarrado, enfim, submisso e incondicionalmente obediente. Freud vê nesses fantasmas masoquistas a busca da posição feminina – ser castrado, suportar o coito, parir. Esses fantasmas encobrem um sentimento de culpabilidade que exige um castigo rigoroso e doloroso e está ligado à masturbação infantil. A encenação toca um ponto de angústia de castração que essa montagem permite velar, abrindo, assim, caminho para o gozo.

O masoquismo erógeno, o prazer na dor, está na base das outras manifestações masoquistas. Freud o examina a partir do amálgama das duas pulsões, de vida e de morte. À libido cabe neutralizar a pulsão de morte, encaminhando a pulsão destruidora, via sistema muscular, para os objetos do mundo exterior. Parte dessa pulsão fica a serviço da função sexual, como sadismo; outra parte permanece fixada libidinosamente no organismo, como masoquismo. O masoquismo erógeno, originário, se define então como o resíduo da pulsão de morte que permanece no organismo; é estruturante, articula a questão da subjetividade onde se marcam sujeito, objeto, campo do Outro e lugar do fantasma, quando da inserção de um sujeito na cadeia significante. Lacan coloca o $ como a posição masoquista enquanto fundante, o sujeito barrado pela estrutura significante.

Das fases evolutivas da libido, o masoquismo erógeno vai tomando diferentes aspectos psíquicos: o medo de ser devorado pelo pai da fase oral, de ser maltratado pelo pai da fase anal e de ser castrado pelo pai da fase fálica. Excluídos dessas fases evolutivas, irão se originar, mais tarde, os fantasmas masoquistas femininos.

Pelo nó da relação entre supereu e eu, Freud chega à noção de masoquismo moral, em 1924, derivando desta grande parte das referências ao masoquismo em sua elaboração posterior. O masoquismo moral acentua a necessidade de sofrimento. Na relação eu-supereu impõe-se uma satisfação pelo castigo e dor. Aí enquadra-se a relação terapêutica negativa, onde o sofrimento advindo da neurose, servindo à finalidade masoquista, se coloca como obstáculo ao processo de cura. No entanto, uma eventual desgraça ou sofrimento podem levar à desaparição de uma neurose rebelde, por deslocamento libidinal. Tem-se a confirmação de que o que importa é a manutenção de uma certa quantidade de sofrimento. O paciente recusa-se a fazer a ligação entre seu sofrimento e um sentimento de culpa. A dor seria o grande benefício do sintoma, pois satisfaria sua necessidade de castigo. É um paciente, pode-se dizer, doente de culpa.

Freud acentua o caráter inconsciente do masoquismo. Há um eu que demanda castigo. Essa demanda remete à relação com o pai poderoso, base do fantasma de espancamento e da relação sexual passiva com ele. É o que Freud aponta como o “sentido oculto” do masoquismo moral – a ressexualização da moralidade leva à regressão, da moral ao complexo de Édipo, “que não beneficia nem o indivíduo nem a moral”.23

Paralelamente, a instância moral se instala no supereu e se manifesta como um sadismo ao qual o eu se submete. Paradoxalmente, o masoquismo moral pode enfra­quecer o sentido moral e levar o indivíduo a infrações e delitos que visam tanto a punição da consciência moral sádica quanto a do destino como representante do pai, podendo até ocasionar danos à sua existência real.

Em um segundo tempo, o sadismo pode voltar-se contra a própria pessoa se ela não consegue direcionar para fora grande parte de seus componentes pulsionais destrutivos. É o que se chama masoquismo secundário. O retorno dessa pulsão de destruição intensifica o sadismo do supereu em relação ao eu. Há, então, uma complementaridade entre o sadismo do supereu e o masoquismo do eu, da qual resulta um sentimento de culpabilidade e a exacerbação da consciência moral, tanto mais exigente quanto maior for a renúncia à agressividade. Observa-se aí como as duas instâncias, tomadas pelo gozo, oferecem um obstáculo ao analista na direção da cura. A situação comporta um paradoxo: a manutenção do gozo sustenta o vínculo transferencial, enquanto qualquer intervenção no sentido de cortar o gozo pode desencadear a reação terapêutica negativa. É a perda do gozo que é evitada pelo sujeito.

Por proceder da pulsão de morte, por corresponder à parte da pulsão de destruição não projetada no mundo exterior, por integrar um componente erótico, o masoquismo moral apresenta o enigma da destruição do indivíduo por si mesmo poder ser uma satisfação libidinal.

A partir de “O problema econômico do masoquismo”, grande parte da teorização de Freud sobre a questão gira em torno dos conceitos de supereu, sentimento de culpa, necessidade de punição, articulados à reação terapêutica negativa e ao benefício do sintoma. Numa outra dimensão, a articulação é feita com o caráter radical da pulsão de morte.

Em 1925, em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud observa em algumas neuroses obsessivas a ausência de sentimentos de culpa. Estes são evitados por uma série de rituais, restrições e penitências que satisfazem aos impulsos masoquistas. Assinala também a existência de uma conexão entre a angústia e uma pulsão masoquista de destruição que o eu recusa-se a satisfazer. Advém, então, o que Freud classifica como reação angustiosa excessiva, inadequada e paralisadora, tal como as fobias de altura, com sua significação feminina secreta. Esta significação feminina, atribuída às janelas, torres, abismos, aproximaria tais fobias do masoquismo.

Em “O mal-estar na cultura”, de 1929, Freud se surpreende por não ter valorizado suficientemente o caráter ubíquo da agressividade, da destrutividade não erótica, e de não lhes ter dado o lugar que merecem na interpretação da vida.24 Tanto maior o rigor do indivíduo contra si, tanto mais exigente toma-se o supereu. Passa a exercer uma agressão sempre maior, não mediada, uma vez que a lei se tornou perversa, insensata, como a lei do gozo. Essa destruição, que Freud encontra no âmago do ser, é retomada por Lacan no seminário sobre a Ética. Ele anuncia que, no final da pesquisa sobre a ética da psicanálise, se evidenciará que a derradeira questão será colocada pelo caráter fundamental do masoquismo na economia pulsional.­ Coloca a questão não só em relação a um determinado sujeito, mas também em relação à civilização e ao seu mal-estar. A civilização se defrontará com o progresso da ciência que busca algo cujo alcance lhe escapa e está ligado ao discurso das letras, da matemática que, observa Lacan, é um discurso que nada esquece. Resta saber se o discurso da física, gerado pelo poder significante, resultará na integração ou desintegração da Natureza.

Em seu “Esboço de psicanálise”, de 1938, Freud questiona a possibilidade de impulsos puramente destrutivos causarem prazer. “Uma satisfação da pulsão de morte que permaneceu no eu não parece produzir sensações de prazer, embora o masoquismo seja uma fusão que é inteiramente análoga ao sadismo.”25 Pode-se pensar que a questão do masoquismo, enquanto fundante, está sempre num além, e que pela entrada na dimensão significante faz-se a marcação do sujeito, mas implica uma perda, perda esta que perdura no ser, como uma dor, dor de ser, dor de viver.

Em “Análise terminável e interminável”, de 1937, Freud coloca o masoquismo como o grande obstáculo ao processo analítico. Ele escreve: “provisoriamente nos inclinamos diante do hiperpoder das forças contra as quais vemos naufragar nossos esforços. Mesmo exercer uma influência psíquica somente sobre o masoquismo constitui uma dura prova ao nosso poder.”26 Em 1933, nas “Novas conferências introdutórias”, Freud já havia escrito que tanto o sadismo quanto o masoquismo, mas especialmente este último, permaneciam como verdadeiros enigmas para a teoria da libido, os quais seriam equacionados “apenas se o que constitui uma pedra no caminho de uma teoria puder tornar-se a pedra angular da teoria que a substitui”.27

É a solução deste enigma que será empreendida por Lacan, introduzindo o conceito de objeto a, segundo ele próprio, sua contribuição para a teoria da psicanálise. O real é o obstáculo ao princípio de prazer, introduzindo a noção de impossível. Nenhum objeto pode satisfazer a pulsão. Esta apenas contorna o objeto que, como diz Freud, não tem a menor importância.

O sujeito é um aparelho lacunar, diz Lacan no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, e nessa lacuna ele instaura a função do objeto enquanto perdido. Em torno dessa falha se estrutura o fantasma como sustentação do desejo. O sujeito, assumindo o papel de objeto,

sustenta a realidade da situação do que se chama de pulsão sadomasoquista, e que está apenas num ponto – na própria situação masoquista. É no que o sujeito se faz objeto de uma vontade outra, que não somente se fecha mas se constitui a pulsão sadomasoquista.28

O objeto a é o resto que sobra da constituição do sujeito, ao qual se liga o gozo, que não se submete ao princípio de prazer. Assinala Lacan no seminário A lógica do fantasma:

é na prática masoquista que é dada propriamente a verdade, na medida em que o masoquista, para obter um gozo no único lugar que é manifestamente acessível, que é o objeto a, deixa-se deliberadamente identificar com esse objeto como recha­ço.29

Para concluir, masoquismo é o nome da repetição, do gozo, da pulsão de morte, fincado no coração do ser, da maior importância na clínica psicanalítica, não tanto pela caricatura pela qual se mostra na perversão, mas, fundamentalmente, pela presença insidiosa, como pano de fundo na clínica da neurose.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em Pulsão e gozo. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 10/11/12.

2 Psicanalistas, membros da Escola Letra Freudiana.

3 Rückert, Die Makamen des Hariri Citado em Além do princípio de prazer.

4 FREUD, S. “La interpretación de los sueños”. In: Obras Completas, vol. V. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1986, p. 378.

5 Ibidem, p. 472.

6 FREUD, S. “Tres ensayos de teoría sexual”. In: Obras Completas, vol. VII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 137, n.15.

7 Ibidem, p. 145.

8 Ibidem, p. 144.

9 LACAN, J. O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 173.

10 FREUD, S. “De la historia de una neurosis infantil”. In: Obras Completas, vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu editores,  1986, p. 25.

11 Ibidem, p. 27.

12 FREUD, S. “Pulsiones y destinos de pulsión”. In: Obras Completas, vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 122.

13 Ibidem, p. 123.

14 Ibidem, p. 124.

15 FREUD, S. “Pegan a un niño. Contribución al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales”. In: Obras Completas, vol. XIV. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 190.

16 Ibidem.

17 Ibidem, p. 191.

18 Ibidem, p. 195.

19 Ibidem.

20 FREUD, S. “Más allá del principio de placer”. In: Obras Completas, vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 14.

21 Ibidem, p. 39.

22 FREUD, S. “El yo y el ello”. In: Obras Completas, vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 55.

23 ______ “El problema económicoo del masoquismo”. In: Obras Completas, vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 175.

24 A perplexidade de Freud acentua o valor do gozo como amálgama sem o qual só resta a pulsão de morte, imperceptível em sua mudez.

25 FREUD, S. “Esquema del psicoanálisis”. In: Obras Completas, vol. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 152, n.3.

26 ______ “Análisis terminable e interminable”. In: Obras Completas, vol. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 245.

27 ______ “Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis”. In: Obras Completas, vol. XXII. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1986, p. 97.

28 Ibidem, (6) p. 175.

29 LACAN, J. La lógica dei fantasma, Seminário del 14 de junio de 1967, notas sem indicação de editora.