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Algumas pontuações sobre o princípio de realidade1

Iara Barros 2

Este trabalho pretende abordar algumas questões acerca do termo “reali­dade” em psicanálise, surgidas a partir do texto de Freud, “Formulações so­bre os dois princípios do funcionamento mental”.

Freud parte da hipótese de um aparelho psíquico regido por um princí­pio que busca a homeostase, sendo o prazer alcançado sempre que haja um equilíbrio energético, e estabelece, em 1911, o intercâmbio entre o par princí­pio de prazer e princípio de realidade, como proposição para abordar ques­tões relativas ao apego e à renúncia pulsional.

Dessa forma, postula o par princípio de prazer e princípio de realidade a serviço da satisfação pulsional, sendo o prazer distinto daquele obtido pela satisfação de uma necessidade. Assim, esse par não se refere a um princípio quase reflexo de uma adaptação à realidade, mas a uma tentativa de abordar a economia pulsional.

Na teorização desses dois princípios, a vertente do gozo como excesso é apontada por Freud quando afirma que:

uma tendência geral do nosso apa­relho psíquico, que pode ser remontada ao princípio econômico de poupar consumo [de energia], parece encontrar expressão na tenacidade com que nos apegamos às fontes de prazer a nossa disposição e na dificuldade com que a elas renunciamos.3

O princípio de realidade também busca obter prazer, ainda que seja um prazer adiado ou diminuído. Quanto a essa temática, Lacan reforça a posição freudiana ao apontar no seminário II que:

contrário ao da intuição subjetiva – no princípio de prazer, o prazer, por definição, tende ao seu fim. O princípio de prazer é que cesse o prazer [...] O princípio de realidade consiste em fazer com que o jogo dure, ou seja, que o prazer se renove, que o combate não termine por falta de comba­tentes. O princípio de realidade consiste em resguardar nossos prazeres, estes prazeres cuja tendência é justamente atingir o cessamento.4

Freud situa o surgimento da fantasia na articulação entre o princípio de prazer e o princípio de realidade e, nesse sentido, postula que a introdução do princípio de realidade possibilita o surgimento do fantasiar como uma das espécies de atividade do pensar (inconsciente) que foi separada do exame de realidade e permaneceu submetida ao princípio de prazer.

Na sequência dessa articulação, ele concebe a fantasia como um substitu­to da satisfação pulsional, sendo esta distinta da satisfação da necessidade. Ou seja, partindo do princípio de que a satisfação só se realiza por substituição e que, na busca de um objeto, o que se presentifica é a falta de objeto, Freud situa a fantasia articulada aos seus objetos parciais como o que surge para ten­tar contornar a falta estrutural de um objeto primordial. Ele afirma que as fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e que no mundo da neurose a realidade psíquica é a reali­dade decisiva. Ela remete ao desejo inconsciente e à fantasia a ele ligada.

Freud aponta, então, uma c onexão entre fantasia e realidade a partir da noção de realidade psíquica e afirma que os processos inconscientes equipa­ram a realidade do pensamento à realidade externa e os desejos à sua realiza­ção. Afirma também que não devemos aplicar nunca os padrões de “realida­de” às estruturas psíquicas recalcadas, nem devemos menosprezar a importân­cia das fantasias na formação do sintoma.

A fantasia faz conexão com a vida sexual do sujeito, uma vez que a parti­cularidade capital da sexualidade humana está na satisfação sexual fantasmática. Portanto, “ao contrário da necessidade, o desejo sexual se satisfaz ilusoriamente. Esse é o resto que se conserva do princípio de prazer”.5

É nessa via que Lacan articula, mais tarde, a realidade com o fantasma. Mas antes de chegar a essa formulação, vai acentuar o que Freud já havia in­dicado, ou seja, que o princípio de realidade não é simplesmente um substitu­to do princípio de prazer e que o aparelho psíquico se situa entre esses dois princípios.

No seminário II, Lacan afirma que:

O aparelho psíquico, como organizado, se situa entre o princípio de pra­zer e o princípio de realidade [...] O princípio de realidade é um princípio de prazer diferido. Inversamente, se o princípio de prazer existe é conso­ante a alguma realidade – esta realidade é a realidade psíquica.6

Retornando ao texto de Freud, encontramos, então, primeiramente, que o funcionamento do aparelho psíquico é regido por um princípio regulador cujo papel é o de garantir a busca de prazer (Lust) por evitação do desprazer (Unlust). Consequentemente, toda tensão do aparelho psíquico é sentida como desprazer, enquanto o prazer está ligado à baixa dessa tensão e à volta ao esta­do de repouso. Esse princípio regulador de constância, de inércia ou de esta­bilidade é constituído pelo par princípio de prazer-princípio de realidade.

Freud conclui, no entanto, a partir da sua clínica, que existe na vida psí­quica uma tendência à repetição, que ocorre sem levar em conta o princípio de prazer, situando-se acima dele, impondo ao sujeito uma satisfação mórbi­da. Ao se dar conta disso, reconhece que alguma coisa não se coaduna com o princípio de prazer. Isso o leva a conceituar uma nova dualidade pulsional – pulsão de vida e pulsão de morte – que problematiza assim os dois princípios do suceder psíquico.

Posteriormente, em seu texto “Problema Econômico do Masoquismo”, Freud realiza uma alteração na sua teoria, afirmando que não é correto identi­ficar o princípio de prazer-desprazer com o princípio de Nirvana. Estabelece, então, uma distinção entre eles, afirmando que “o princípio de nirvana expressa a tendência da pulsão de morte; o princípio de prazer representa a reivindica­ção da libido e, sua modificação, o princípio de realidade, a influência do mundo exterior”.7

No seminário VII, Lacan levanta várias questões sobre o princípio de rea­lidade e o princípio de prazer e aponta que a introdução da pulsão de morte como alguma coisa que governa, no sentido mais amplo, o conjunto de nossa relação com o mundo, torna problemáticos tanto o pareamento do princípio de prazer com o princípio de realidade quanto a ideia do princípio de realida­de como um prolongamento, uma aplicação do princípio de prazer.

No mesmo seminário, encontramos algumas interrogações de Lacan acerca do termo realidade: “Trata-se da realidade cotidiana, imediata, social? Do con­formismo às categorias estabelecidas, aos costumes admitidos? Da realidade descoberta pela ciência, ou daquela que absolutamente ainda não o é? Será a realidade psíquica?”8

Lacan recorta dois termos em alemão aos quais Freud recorre em sua obra para designar a realidade: Realität e Wirklichkeit. Em seu texto “De nossos antecedentes”, Lacan afirma que não se pode tomar como unívoca a realidade que se evoca ao conjugar os dois referidos termos – Wirklichkeit e Realität –, na medida em que Freud reserva ao segundo a realidade psíquica, e o primeiro termo assume, a partir disso, o seu valor operante – Wirklich.

Por operatividade, Lacan designa tanto a operação do próprio significante, que funciona segundo a estrutura da linguagem, quanto ao que resta de inassimilável pelo simbólico. Ou seja, concomitante à operatividade da ca­deia significante encontra-se a operatividade real, definida por sua irredutibilidade, impossibilidade, assim como por sua efetividade.

Essa efetividade real se distingue da realidade já operada pela simbolização que a cadeia significante proporciona, embora o real só possa ser aborda­do quando circunscrito justamente pela operação simbólica.

Lacan, ao prosseguir a questão a respeito da realidade em psicanálise, a partir das noções de real e objeto a, aborda a fantasia e o princípio de realidade como equivalentes. Nesse sentido, situa a realidade psíquica como um véu, isto é, uma resposta do sujeito ao se defrontar com a defasagem entre o que pode representar e o que pode vir da realidade crua sem simbolização.

No seminário XX, Lacan afirma que a fantasia é a conjunção apontada entre o $ e o objeto a. “Essa fantasia, em que o sujeito é preso, é, como tal, o suporte do que se chama expressamente, na teoria freudiana, o princípio de realidade.”9

Lacan considera, portanto, que a realidade pertence ao próprio campo da fantasia, ao que ele chama de princípio de realidade, isto é, “prova de realida­de não no sentido da prova do que ocorre como representação do sujeito, mas a prova do sujeito no próprio ato de sua divisão a partir do que vem do Outro”.10

Poderíamos, então, pensar a realidade exterior de que nos fala Freud como a realidade do fantasma, na medida em que o fantasma se constitui a partir do campo do Outro?

O fantasma é a articulação lógica através da qual o sujeito faz borda à não-relação sexual e, nesse sentido, comporta tanto a dimensão do gozo como a do desejo.

Segundo Vidal, o trabalho analítico implica a conjunção e a disjunção entre as formações do inconsciente e o fantasma, sendo este último construído em análise.

Em seu texto “Da relação da psicanálise com a realidade”, Lacan, referin­do-se à clínica, afirma que o psicanalisante é aquele que chega “a descobrir a fantasia como motor da realidade psíquica, a do sujeito dividido”.11

Portanto, o analista longe de ser a medida da realidade, só faculta ao analisante

sua verdade, ao se oferecer, ele mesmo, como suporte do des-ser, graças ao qual esse sujeito subsiste numa realidade alienada, sem nem por isso ser incapaz de se pensar como dividido, do que o analista é propriamente a causa.12

Notas e Referências Bibliográficas

1 Publicado em Centelha freudiana. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 38.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3 FREUD, S. “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”. In: Obras completas, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, p. 281.

4 LACAN, J. O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 112.

5 MYSSIOR, S. “Um saber que faz falta”. In: A criança e o saber, Revista da Escola Letra Freudiana, n° 23. Rio de Janeiro: Revinter Editora, 1999, p. 70.

6 LACAN, J. O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, op. cit., p. 81.

7 FREUD, S. “Problema econômico do masoquismo”. In: Pulsão e gozo, Revista da Escola Letra Freudiana, nº 10/11/12. Rio de Janeiro: Dumará Editora, 1992, p. 121.

8 LACAN, J. O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 32.

9 ______ O Seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 108.

10 FREIRE, A. B. “Prova de realidade e/ou rejeição”. In: Sobre a psicose. Rio de Janeiro: Contracapa Edi­tora, 1999, p. 123.

11 LACAN, J. “Da relação da psicanálise com a realidade”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 358.

12 Ibidem.