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Verwerfung e/ou forclusão1

Eduardo Vidal 2

No final do Seminário 3, As psicoses, Lacan toma uma decisão radical de tradução: “não retorno à noção de Verwerfung da qual parti e para a qual, depois de ter refletido bem, lhes proponho adotar definitivamente uma tradução que me parece a melhor: forclusão.”3 O fato de ser uma tradução que se propõe como definitiva não implica substituir o termo Verwerfung, que no curso de seu ensino continua aparecendo sem ser inteiramente recoberto pelo conceito de forclusão.

Lacan relaciona o trabalho do luto a momentos cruciais que têm alguma relação com o processo da Verwerfung. Ao mesmo tempo, quando se refere à Coisa, mantém estritamente Verwerfung, sobretudo para o mecanismo paranoico de rejeição da Coisa enquanto tal e, ao circunscrever os efeitos do discurso da ciência, destaca a especificidade da Verwerfung do sujeito que esse discurso ocasiona.

No estudo “Sobre a significação da negação em francês”, de 1928, Damourette e Pichon consideram que a língua francesa constituiu para si um novo sistema de ordenação gramatical que substitui a negação latina e se ordena em função de dois eixos: um, o discordancial, marca uma inadequação do fato com seu meio; outro, o forclusivo, indica que o fato está excluído do mundo articulado pelo locutor. O dicionário etimológico Bloch e von Wartburg localiza a emergência do termo forclusão no século XV com o sentido de exclusão e remete-o ao verbo clore, que fica limitado em francês a certas locuções, sendo substituído por fermer, fechar. Na linguagem jurídica, significa a perda de uma faculdade ou de um direito por não apresentar o recurso no prazo devido e seu equivalente em português é preclusão. De modo figurado, tem o sentido de excluir com força, impedindo a entrada.

Lacan funda com esse termo um conceito que não é mecanismo, mas posição na linguagem da ordem de um não querer saber nada disso. A forclusão é, então, algo mais do que uma tradução. A Verwerfung é a rejeição de certos significantes que ficarão para sempre fora do inconsciente. Consiste, pois, numa posição ativa do sujeito face ao insuportável, um dos nomes do impossível. A forclusão não se reduz ao ato de rejeição, mas também a seu efeito, ao modo de aparição do real. Fala daquilo que, excluído do simbólico, (re)aparece a partir do real. O ato de Lacan produz a emergência de um conceito que funda um registro e uma orientação, a orientação do real.

A conceitualização da forclusão provém da interseção de dois textos de Freud – e Lacan o deixa em evidência – que são, por um lado, o parágrafo do caso do Homem dos Lobos, um ponto de extrema precisão lógica de Freud e, por outro, a referência teórica ao caso Schreber onde se faz a crítica à projeção. Como Freud sinaliza, não se trata então de que algo unterdrückt, caído por baixo, suprimido no interior, seja projetado para o exterior, mas de algo que foi aufgehoben, suspenso, cancelado no interior, reapareça, volte do exterior, Wiederkehr von Äussere. Interessa-me destacar esse termo. Lacan o fez dizendo que não se trata aqui de retorno, pois este se produz na articulação simbólica como retorno do recalcado. Trata-se de Wiederkehr, podemos dizer, da volta, aparição, reaparição a partir do exterior, para estabelecer desse modo uma clara distinção com o recalque. Esse é o primeiro ponto. Acredito que é ali onde o analista é convocado a localizar, em cada caso, a questão do sujeito, a produzir o sujeito em questão.

É o que Freud propõe ao articular três correntes determinantes da posição do Homem dos Lobos na linguagem. Uma delas detestava a castração, enquanto a outra a aceitava, assumindo a posição de feminilidade como substituto; a terceira, rejeitava, desestimava, rechaçava (verwaif) a castração, o que equivale a dizer que não havia nenhum juízo sobre sua existência; era como se a castração não existisse. Nesse relato clínico, Freud escreve Eine Verdrüngung ist etwas anderes als eine Verwerfung: “um recalque é algo diferente de uma rejeição.”4

Lacan enfrenta o problema da Verwerfung já no seminário 1. E diz que a Verwerfung constitui uma orientação em seu discurso que permite pontuar um real primitivo e heterogêneo, produzido à margem do texto simbólico. A Verwerfung emerge numa região de não-Behajung, de ausência de afirmação. Ao fazer sua crítica à tradução francesa oficial da já citada frase de Freud, “um recalque é algo diferente de um juízo que rejeita e escolhe”5, Lacan elucida o próprio conceito. No que se refere à Verwerfung, não há nenhuma possibilidade de existência de juízo, pois supõe uma não-Behajung, ou seja, nenhum rastro de juízo sobre a castração. Sem deixar de considerar a dificuldade que o termo implica, Lacan propõe rejet, rejeição. Assim, certos fenômenos tais como o déjà-vu ou o déjà-raconté não são facilmente localizáveis no simbólico, pois não se produzem como rememoração na trama de um texto. Sua dimensão imaginária é evidente, mas sua determinação pode ser encontrada em algo do real. A clínica do acting-out mostra – e nisso o caso do “Homem dos miolos frescos”6, relatado por Ernest Kris, é paradigmático – que o que foi cerceado (retranché) do ser do sujeito reaparece no real.

Desde o seminário 1, produz-se uma orientação do real na transmissão da psicanálise. Lacan inaugura, a partir do termo freudiano Verwerfung, um caminho lógico onde o real se escreve não simplesmente como interstício ou resíduo do simbólico e do imaginário. O real é fundado como registro que é efeito de uma rejeição e exclui qualquer inscrição precedente.

É desse modo que Lacan o articula em sua “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud”. A Verwerfung traduzida como retranchement, cerceamento, é o que se opõe à Behajung primária e constitui como tal o que é expulso. A Verwerfung, escreve Lacan, cortou rente a manifestação da ordem simbólica.

Behajung, como juízo primeiro, é a condição para que algo do real se apresente à revelação do ser – em clara referência ao texto de Heidegger – para que, num segundo tempo, seja reencontrado, já que desde sempre está perdido. A Verneinung, negação, tributária da afirmação primeira, constitui o modo lógico pelo qual a palavra inconsciente pode se imiscuir no discurso.

Freud, no texto de 1925, estabelecia que a negação é um modo de tomar conhecimento do recalcado, através da suspensão (Aufhebung) do recalque. Assim, como substituto intelectual dela, o não é um signo da marca (ein Markzeichen), um certificado de origem. Originalmente o juízo provém dos processos de inclusão no eu (Einbezieliung ins Ich) e de expulsão para fora do eu (Ausstossung aus dem Ich), realizados sob a égide do princípio de prazer. Com a negação, o juízo alcança um certo grau de independência do recalque e, com isso também, da coerção exercida pelo princípio de prazer. A negação, como consequência da expulsão (Nachfolge der Ausstossung), se inscreve em seu mais além, do lado da pulsão de morte. O real já está ali, fora da simbolização primordial, e o símbolo constitui o que existe sobre um fundo de inexistência. Toma-se necessário diferenciar Ausstossung da Verwerfung (no escrito de Lacan, em alguns momentos, os dois termos parecem se aproximar). Enquanto a primeira opera em consonância com a Behajung, produzindo um real que será recortado pelo símbolo como definitivamente perdido, a segunda carece de qualquer relação com o juízo. A Verwerfung determina o que, cerceado na abertura do ser, não se encontra na história do sujeito, lugar onde o recalcado faz seu retorno. A posição do sujeito assim definida implica em não querer saber nada no sentido do recalque, o que equivale a dizer que o cerceado (retranché) não constitui um saber inconsciente. O que ocorre com isso que não foi simbolizado? Lacan formula a operação do seguinte modo: “O que não veio à luz no simbólico, aparece no real.”7

O que está em jogo na alucinação do dedo cortado, padecida pelo Homem dos Lobos aos cinco anos de idade, constitui um tipo de satisfação errática que não se inscreve no âmbito do princípio de prazer e interroga a relação do sujeito, não com os objetos, mas com o ser.

No seminário 3, Lacan estabelece que o que cai sob a ação da Behajung primitiva, submetido à simbolização primordial, terá um destino completamente diferente do que o que é afetado pela Verwerfung. “Na relação do sujeito ao símbolo, há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva, a saber, de que algo que não foi simbolizado venha a se manifestar no real.”8 Qual seria o lugar escolhido pela ação da Verwerfung senão o do significante primordial?

Lacan propõe articular a questão da seguinte maneira:

previamente a toda simbolização – essa anterioridade é lógica não cronológica – há uma etapa, como as psicoses o demonstram, em que pode ocorrer que parte da simbolização não se leve a cabo. Essa etapa primeira precede toda a dialética neurótica, fundada na neurose como uma palavra que se articula, enquanto o recalque e o retorno do recalcado são uma só e única coisa. Pode acontecer então que algo primordial referente ao ser do sujeito não entre na simbolização e seja, não recalcado, mas rejeitado.9

Ainda que isso não esteja demonstrado, não implica que seja uma hipótese. É, pois, uma articulação da questão da aparição do sujeito no significante e, sem corresponder a nenhuma suposição de gênese, exige uma lógica prévia à do recalque constitutivo da neurose. Podemos inferir do texto que a simbolização pode faltar precisamente no que determina o ser do sujeito, já não como recalcado, mas como rejeitado. Não se trata, pois, de uma generalização da Verwerfung, mas de um buraco específico. A anterioridade, que é de ordem lógica, pode constituir uma indicação para a questão sempre problemática do ser do sujeito em sua relação com o real.

O trabalho das psicoses confronta o analista com a estrutura. O dizer psicótico, no neologismo ou na frase interrompida, põe em evidência o abismo radical existente entre o significante e a significação e leva a concluir que o significante não significa nada. Assemântico, o significante determina “a instância da subjetividade enquanto presente no real”.10 É preciso diferenciar, na estrutura de linguagem, a psicose como consequência de um modo peculiar de forclusão que recai sobre o significante do pai. A operação é definida no escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”:

a Verwerfung será, pois, considerada por nós como forclusão do significante. No ponto em que, veremos como, o Nome-do-Pai é chamado, um simples buraco, que pela carência de efeito metafórico provocará um buraco correspondente no lugar da significação fálica, pode responder no Outro.11

É necessário ater-se à estrutura do significante como tal e, especialmente, a como esta se dá na psicose. No campo do Outro, a carência do significante Nome-do-Pai produz um buraco cujo efeito repercute na ordem da significação. Não revelaria então a psicose o buraco do simbólico que o neurótico e certa psicanálise tentam preencher com a significação? O psicótico, lembrem o que Lacan dizia, tem a desvantagem, mas também o privilégio de não acreditar em Papai Noel e, nesse sentido, pode fazer avançar a psicanálise. Que o Outro consista num buraco, é a psicanálise que o ensina. A função da escrita é relevante no trabalho de constituir a borda do buraco da forclusão. E o psicótico se dedica, com uma lógica implacável, a produzi-lo.

Não é menor o esforço teórico de um analista como Lacan para fazer passar à escrita o real que governa a significância:

tudo o que a lógica desenhou, ao relacionar a linguagem ao que é posto como real, não nos permitiria uma localização em certas linhas a serem inventadas – e reside aí o esforço teórico que desenho com essa facilidade que vai ao encontro de uma insistência –, não seria possível encontrar aqui uma orientação?12

É desígnio dos universitários fazer do ensino de Lacan algo sistematizável em períodos correspondentes a cada um dos registros. Essa abordagem simplificadora sustenta-se num radical desconhecimento do fato de que seu ensino tem como ponto de partida a tríade R, S e I, que constitui uma escrita mesmo antes de ter sido encontrado o nó. Da universidade chega também a ilusão de uma obra clara construída em detrimento da opacidade em jogo na cadeia significante. Pois o discurso que Freud inaugura – longe de se tratar de algo inefável ou sombrio – exige formular uma lógica subdesenvolvida que possa escrever, a partir do rastro que instaura o sujeito no real, a negação, em suas duas formas possíveis, a discordancial e a forclusiva. Não há como tratar um efeito de significante sem considerar, pelo menos, um fato de escrita.

O dizer que se formula como primeiro traz a verdade do ser falante: o sexo não define uma relação. Um dizer que se expressa, como todo dizer, numa proposição: não há relação sexual. Que ordem de negação se coloca em jogo no dizer primeiro? Passar de novo pela distinção de Damourette e Pichon sobre os modos de negação no francês não significa seguir a vertente semântica dos autores, mas escrever uma função lógica. Assim, a discordância define a negação que afeta o quantificador, resultando a escrita do não-todo (x). A forclusão refere-se à existência: algo existe a partir de que se possa dizer ou não. Que não se possa dizer é uma questão da ordem do real. Não há relação sexual é um dizer em que a negação recai sobre a existência à medida que não é possível escrever a relação sexual. A forclusão só é articulável no dizer, incidindo sobre a função x que torna impossível para o ser falante o acesso à relação sexual. A existência (existe: x; não existe: x) define-se em correlação com a rejeição (Verwerfung) da função, quer dizer, sua negação: x, não é verdadeiro enunciar a prevalência da função fálica. Isso determina, por um lado, ao menos um que não verifica a função a partir do qual outros podem nela se inscrever (x x). E correlaciona, por outro lado, a inexistência com a rejeição da função (x x). Se algo pode se escrever é o que se relaciona ao gozo, que só pode ser interrogado como sexual através do falo. Ante o fracasso do sexual, resultam dois modos de falta e de escritura: a castração, no que concerne ao gozo dito masculino, e a divisão, referente ao gozo dito feminino. A sexualidade é instaurada como falta no inconsciente e ali verificam-se os impasses que o gozo sexual engendra. O que o discurso comum supõe como dado, o homem e a mulher, o discurso analítico deve escrever, sendo através da escrita que o dizer da não relação sexual pode, a partir do real, aparecer no simbólico.

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Acerca do Homem dos Lobos

Podemos afirmar que trata-se do caso de Freud que suscitou mais conjecturas na transmissão da psicanálise. Nesta breve pontuação, limito-me a levantar alguns pontos da análise com Freud, sem prosseguir em considerações quanto as intervenções de Ruth Mack Brunswick e de Muriel Gardiner.

Os contemporâneos de Freud foram, às vezes, imprecisos na questão da psicose. Desarticularam a função do recalque na produção da neurose, operação que Freud formulara cuidadosamente no seu artigo de 1915, “O recalque” (“die Verdrängung”), e foram em busca da origem onde o pré-verbal se anteciparia ao verbal, encontrando ali o gérmen dos estados psicóticos ou de quadros borderline, algo assim como se dissessem: “tudo já aconteceu noinício”, esquecendo que “no início era o verbo”. Desse modo, a neurose e, sobretudo, a obsessiva aparecia como defesa ante estados psicóticos primitivos, chegando-se à postulação de que as defesas obsessivas de grau intenso serviriam de anteparo às ansiedades psicóticas. Coube a Lacan instaurar o campo das psicoses, separando-o da estrutura da neurose.

A distinção recai sobre o destino do significante Nome-do-Pai. Se o recalque desse significante está no fundamento da estruturação do inconsciente, na metáfora e na metonímia, sua forclusão deixa o sujeito privado da operação metafórica, assim como não o submete à significação do falo. Em sentido estrito, há de se considerar, a partir de Freud, outra instauração da instância do inconsciente na psicose. Uma falha no recalque originário faz com que um buraco seja um buraco, com a abolição do uso metafórico da linguagem. A barra instituída no recalque originário estabelece o enlace da representação de palavra do pré-consciente (Worstvorstellung, Wv) com a representação de coisa inconsciente (Sachevorstellung, Sv), possibilitando que a palavra advenha do discurso ali onde a coisa tornou-se ausente. Fala-se sempre de outra coisa, em outro lugar. O inconsciente é a escrita de rastros, marcas da ausência da Coisa. Freud estabelece, como consequência da falha do recalque originário no processo psicótico, o buraco no cerne do inconsciente cujo efeito é uma ruptura nas cadeias de ligação entre Wv e Sv (Rp e Rc), sendo os restos de palavras tratados como coisas. Um deslizamento sem fim, sem pontos de basta, um fluir-fruir metonímico. No seu escrito de 1958, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan precisou o momento de irrupção da psicose como resposta, na forclusão do Nome-do-Pai, ao apelo ao significante paterno. Esse chamado determina no sujeito pré-psicótico o desencadeamento de uma psicose. Deriva-se disto a condição necessária para estabelecer um diagnóstico da estrutura a partir das primeiras entrevistas como questão preliminar ao tratamento. Como foi entendida a questão por alguns analistas? Como palavra de ordem, saindo atrás das pistas no paciente, fenômenos elementares incluídos. Isolaram o fenômeno de sua articulação, com o aval de que o psicótico está fora de discurso; não fizeram outra coisa senão enquadrar a psicose no campo da psiquiatria. Pois, o risco do desencadeamento de uma psicose é uma questão a ser tratada no curso de um tratamento regido pela direção, não do paciente, mas da estrutura da linguagem que determina o sujeito. O apelo ao Nome-do-Pai é um risco em cada análise. O curso do ensino de Lacan põe em evidência esse risco propondo os Nomes-do-Pai em suplência ao furo que as dimensões do gozo fazem ao ser falante. Fiat furo!

Como procede Freud no caso do Homem dos Lobos? A partir do que se estabelece no discurso. A estrutura não precede o dizer, nem existe sem ele. Uma análise repousa na temporalidade nachträglich, a posteriori. Freud escreve a história que o paciente construiu em análise, história que não é outra senão a de sua neurose infantil. A neurose do sujeito adulto supõe a existência de sintomas que constituíam uma neurose na infância embora, na maior parte dos casos, sem que esta tenha sido percebida como tal. Uma diferença significativa com a psicose, cuja eclosão não espera, nem precisa de uma série prévia na infância. Sem história, a psicose carece, portanto, do nexo temporal da neurose. Os pontos cruciais da neurose foram reconstituídos no processo analítico, sob transferência, com o vencimento das resistências que se opunham ao trabalho. Lembremos que o diagnóstico em psiquiatria prescinde do trabalho e do próprio sujeito. A história em psicanálise enlaça no discurso sintomas até então soltos. A perturbação no comer significaria uma primeiríssima histeria à qual se somam a fobia dos lobos e as atitudes beatas, obsessivas. O enlace das três constelações constitui a série completa da neurose infantil como predisposição à neurose do homem adulto.

Freud considera como cerne do caso a constituição de uma histeria genuína com fenômenos de angústia e sintomas de conversão. De acordo com a formação do sintoma histérico, o recalque recai sobre a homossexualidade que se aloja e se apropria de um órgão, no caso, o intestino. A fobia edifica-se sobre o sintoma de conversão e a eclosão da angústia já não se manifesta na presença do pai, objeto da pulsão homossexual recalcada, mas frente a seu substituto, o lobo, para logo depois deslocar-se a outros animais. A virada tem como pivô a angústia ante a castração.

Em torno do significante do pai, afetado pelo recalque, produz-se a outra virada decisiva, desta vez, ao modo de uma neurose obsessiva. Acontece uma modificação da relação ao Outro. Sob a influência religiosa da mãe, a sexualidade é sufocada por uma beatitude expressa através do cerimonial religioso. Desse modo, pouco a pouco, o sujeito afasta-se dos laços familiares e introduz-se na comunidade humana constituindo-se em um “ser social, moral e educável”.13 Não se tratou, neste caso, de superpor as diversas neuroses do sujeito, mas de precisar, a cada virada, a função do pai na constituição do sintoma. Se os primeiros sintomas, núcleo da histeria, instalaram o pai no inconsciente numa relação homossexual e masoquista, já a fobia presentificava o encontro com a castração que põe em risco a preservação narcísica do sujeito, enquanto que a religiosidade obsessiva abre-lhe caminho para o Outro num laço social pautado pelo cerimonial.

Pensamos que a expressão caso borderline, proferida por Lacan no seminário 10, A angústia, refere-se a estas constelações analisadas por Freud, o que não implica numa aceitação das noções imprecisas localizadas entre neurose e psicose, como são os casos ditos fronteiriços ou limítrofes.

A condução do caso segue rigorosamente o efeito do recalcamento da pulsão a partir dos rastros que se ouvem nas entrelinhas das cadeias associativas produzidas na transferência analítica. Há a suposição freudiana de um sujeito que desde sua infância padeceu de uma grave neurose. Contudo, o recalque, Verdrängung, não é suficiente para dar conta da divisão do sujeito em questão. Persiste uma outra corrente mais originária que desestimou a castração. O recalque é uma operação que difere da rejeição, da desestimação (Verwerfung).

Transcrevemos os parágrafos onde a discussão é lançada:

Tornou-se notório para nós a inicial tomada de posição de nosso paciente ante o problema da castração. Rejeitou-a e se ateve ao ponto de vista do comércio pela parte posterior. Quando disse que a rejeitou, a significação [Bedeutung] mais imediata desta expressão é que não quis saber nada dela no sentido [Sinn] do recalque.

Com isso, na verdade, não se proporcionou nenhum juízo [Urteil] sobre sua existência, mas era como se ela não existisse. Pois bem, essa atitude não podia ser definitiva, nem sequer persistir nos anos de sua neurose infantil. Encontram-se depois boas provas de que havia reconhecido [annerkannt] a castração como um fato. Tinha também, nesse ponto, se comportado como era característico de seu ser, o que muito nos dificulta tanto a apresentação como a empatia. Primeiro, tinha se revoltado mas, depois, cedeu, e uma reação não tinha abafado [aufgehoben] a outra.

No final, as duas correntes opostas subsistiram, lado a lado, uma das quais detestaria a castração enquanto a outra estava prestes a aceitá-la e consolar-se com a feminilidade como substituto. A terceira corrente, a mais originária e profunda, que simplesmente havia rejeitado [verworfen] a castração, e na qual não estava ainda em questão o juízo sobre sua realidade [Realität] continuava sendo sem dúvida reativável. Referi, em outro lugar, precisamente sobre este paciente uma alucinação que teve aos cinco anos [...]14

Que a castração seja reconhecida, annerkannt, significa que ela foi incluída no juízo como existente. O sujeito se divide frente a ela, com uma atitude de revolta e outra de aceitação que implica numa posição de feminilidade ante o pai. É o efeito do recalque que funda o sintoma e, com ele, a possibilidade de que seja tratado pelo inconsciente. As duas correntes opostas enodam-se em tomo do pai como agente da operação de castração. Uma terceira mais originária desestima a castração e a consequência é uma alucinação de ter um dedo seccionado (não pode precisar de que mão), sustentado apenas pela pele. Não sentiu dor, mas uma grande angústia. Não conseguiu dizer uma palavra à governanta. Quando, um pouco mais tranquilizado, olha seu dedo, percebe-o intacto.

Há de se fazer aqui uma distinção entre a Verwerfung que atinge o significante Nome-do-Pai e aquela que recai sobre a função do falo como castração. Elas não são da mesma ordem. A primeira determina um buraco no Outro ao qual responde um buraco equivalente no nível da significação fálica, como o prova o delírio de emasculação de Schreber com o imperativo de gozar como mulher de Deus. Já a Verwerfung da castração deve ser considerada na lógica que diz que só há forclusão da função a ser escrita . Escrever a função permite estabelecer que existe um x que a satisfaça, que responda a ela. Sobre a relação problemática do existe, a psicanálise, como o testemunha o caso do Homem dos Lobos, tem ainda algo a dizer. Só há forclusão do dizer, do dizer que algo existe, ou seja, que possa ser dito ou não. é a função que escreve o fato da relação sexual fazer questão para o falante. Precisamente, é da cena primordial, Urszene, do coito dos pais que se irradiam, no dizer de Freud, os efeitos nachträglich da história da neurose. escreve a função da castração, da qual o caso é uma demonstração com a série de cenas de sedução que o formam. A construção freudiana retrocede até momentos inaugurais do sujeito como a dita cena primordial à idade de um ano e meio. A teorização está permeada do debate com Jung que, desestimando a castração, pretendia explicar a neurose por um simbolismo transcendente fundado em protótipos herdados. Freud precisa provar a realidade da cena (ihre Realität), sua contingência traumática e sua eficácia retroativa. E avança nessa direção, desconhecendo a lógica de que tudo o que se articula como significante, desde os primórdios, cai sob o efeito da castração. Ante a castração, a função do véu torna-se relevante tal como é apresentada no afresco de Pompéia, no instante que antecede à revelação do falo.

O mundo, para o sujeito em questão, mantinha-se escondido atrás de um véu. Só em breves lapsos podia enxergar a realidade sem ele. Com a análise, a função do véu foi se dissipando. Uma ponte significante foi estabelecida entre o fato de ter nascido com uma membrana fetal (Glückshaube) e considerar-se uma criança afortunada (Glückskind), confiança perdida com a doença gonorreica aos dezessete anos. O véu tanto lhe oculta o mundo, quanto o oculta dele. A análise da função do véu leva Freud a estabelecer uma fantasia de retorno ao seio materno, não para renascer como queriam os arquétipos junguianos, mas para ser alcançado ali por um pai que o nomeasse filho ou para parir um filho dele. Escreve Freud: “o rasgar do véu é análogo ao abrir os olhos, à abertura da janela. A cena primordial tem sido edificada como condição de saúde.”15

Na busca de uma realidade última, Freud depara-se com o véu do fantasma, que se rasga numa pulsação de abertura e fechamento. A função do fantasma é a janela que se abre protegendo o sujeito do real. Interessa, precisamente, o marco da janela que faz o enquadre do que se vê, como nos sonhos dos lobos que dá o nome ao sujeito. A estrutura do marco, com o suporte que dão os galhos em que se sustentam os lobos, é essencial para determinar o lugar do real na estrutura. Pois o real apresenta-se neste caso como o que há de mais radical e inassimilável no trauma. Seria possível chegar até ele? A cena dos lobos que olham fixamente o sujeito só pode ser tomada como convém, como Vorstellungrepräsentanz, o representante da representação ante o encontro falho com o sexo. Estabelecer o lugar do real é primordial. Real a ser situado entre o trauma e o fantasma que lhe faz a tela – o véu do Homem dos Lobos – uma borda que protege, ao mesmo tempo que limita.

Freud, em seu anseio de avançar na direção do traço primeiro, aquele que foi perdido no ato do recalque originário, aventura-se no campo do impossível. Os riscos são grandes.

No seminário 11, Lacan diz:

Lembrem-se do desenvolvimento, tão central para nós, do Homem dos Lobos, para compreender qual é a verdadeira preocupação de Freud à medida que para ele se revela a função do fantasma. Ele se empenha, e de um modo quase angustiado, em interrogar qual é o encontro primeiro, o real, que podemos afirmar traz o fantasma... Esse real, sentimos que, através de toda essa análise, arrasta consigo o sujeito, e quase o força, dirigindo de tal modo a pesquisa que, depois de tudo, podemos hoje nos perguntar se essa febre, essa presença, esse desejo de Freud não é o que, no seu doente, pôde ter condicionado o acidente tardio de sua psicose.16

A posição quanto ao lugar e a função do real decide o destino de uma análise. O desejo febril de Freud de localizar o real último como garantia de sua experiência força esse real a aparecer fora da janela do fantasma, que o sonho recorrente dos lobos tão bem limitava.

Muitos são os interrogantes. Uma indeterminação ante o real pode bem definir a ética da psicanálise. Não faltam os que se precipitam, supondo que Freud, ao forçar o real, interviria numa estrutura já constituída, desencadeando a psicose no paciente. Mas, então, por que falar de acidente tardio e não de estrutura? Em todo caso, parece evidente que o que se diga na análise da estrutura não independe da direção do tratamento e do desejo do analista que o rege.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em Psicoses. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 36.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3 LACAN, J.El seminário, libro 3, Las psicosis. Buenos Aires: Paidós, 1984, p. 456.

4 FREUD, S. “De la historia de una neurosis infantil”. In: Obras completas, vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1999, p. 74. Em alemão: G.W., vol. XII, p. 111.

5 LACAN, J. Le séminaire, livre 1, Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975, p. 54.

6 KRIS, E. “Psicologia do ego e interpretação na terapia psicanalítica”. In: 1, 2, 3, 4 - número, transferência, fantasma, direção da cura. Revista da Escola Letra Freudiana, nº l/4. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1993, p. 139.

7 LACAN, J.“Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la “Verneinung” de Freud”. In: Écrits. Paris: Seuil, op. cit., p. 388.

8 ______ El seminário, libro 3, Las psicosis, op. cit., p. 119.

9 Ibidem, p. 118.

10 Ibidem, p. 266.

11 LACAN, J. “D’une question préliminaire a tout traitement possible de la psychose”. In: Écrits, op. cit., p. 558.

12 ______ Le séminaire, livre XIX, ...Ou pire. Paris: Association Freudienne Internationale, p. 18.

13 FREUD, S. “De la historia de una neurosis infantil”, op. cit., p. 104. Em alemão: G.W. vol. XII, p. 150.

14 Ibidem, p. 78. Em alemão: G.W. vol. XII, p. 117.

15 Ibidem, p. 92. Em alemão: G.W. vol. XII, p. 135.

16 LACAN, J. Le séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Points Seuil, 2002, p. 64.

Bibliografia:

BLOCH, O. et VON WARTBURQ W. Dictionnaire Étymologique de la Langue Française. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.

DAMOURETTE, J. et PICHON, E. “Sobre a significação psicológica da negação em francês”. In: Die verneinung - a negação, Revista da Escola Letra Freudiana, nº 5. Rio de Janeiro: Tavares e Tristão Gráfica e Editora, 1989.

FREUD, S. “Die Verneinung - a negação”. In: Die Verneinung - a negação, op. cit.

LACAN, J. Le séminaire, livre X, L’angoisse. Paris: Éditions du Seuil, 2004.

VIDAL, E. “Considerações sobre Die Verneinung”. In: Die Verneinung - a negação, op. cit.