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A Verleugnung e a formação do analista1

Comissão do Passe2

A psicanálise não atingiu de modo algum seus limites, ao contrário. Há ainda muitas coisas a descobrir na prática e na doutrina. Em psicanálise não há solução imediata, mas apenas a longa, paciente, busca dos porquês.3

A instauração do dispositivo do passe na Escola Letra Freudiana tem produzido efeitos: perplexidade e indagações, enigma e trabalho e, assim como todo ato, efeitos de desconhecimento, correlacionado por Lacan à Verleugnung freudiana. Qual consequência lógica é preciso extrair do fato de que o desmentido implica o desconhecimento em jogo no ponto de passagem do analisante a analista? Se Lacan propõe que se procure dissipar na Escola a “sombra espessa”4 que encobre essa passagem, torna-se então necessário enfrentar, com trabalho longo e paciente, o desconhecimento que o real aí provoca e a negação sistemática que produz.

O mecanismo do desmentido, como Lacan traduz a palavra alemã Verleugnung, inclui o significante leugnung, que remete a negar, e mais do que isso, desmentir. Não se trata, então, de uma negação qualquer. Se o termo Verleugnung está entre os diversos significantes freudianos empregados no sentido da negação, parece, no entanto, ir mais longe. Diz respeito ao ato de recusar ativamente uma evidência, paradoxalmente inegável, mantendo a ambiguidade entre a verdade e a mentira. Freud o eleva ao estatuto de um mecanismo necessário para que o sujeito se articule ao complexo de castração.

A partir do texto “A organização genital infantil”, Freud já começa a estabelecer uma correlação entre o desmentido, leugnung, e a castração:

sabemos como as crianças reagem à sua primeira impressão da ausência de um pênis, desmentem [leugnung] o fato e acreditam que elas realmente [...] veem um pênis. Encobrem a contradição entre a observação e a preconcepção, dizendo-se que o pênis ainda é pequeno e ficará maior dentro em pouco, e depois lentamente chegam à conclusão afetivamente substantiva de que, afinal de contas, o pênis estivera lá, antes, e fora retirado depois. A falta de um pênis é vista como resultado da castração e agora a criança se defronta com a tarefa de chegar a um acordo com a castração em relação a si própria.5

O horror de se deparar com a verdade do sexo e da morte que a Verleugnung implica está sempre presente na estruturação do sujeito falante. O desmentido da castração do Outro está em jogo nos primórdios da constituição do sujeito.

A Verleugnung é uma operação que permite encobrir a contradição e a incompatibilidade entre dois elementos: uma satisfação pulsional, à qual não se quer renunciar, e um elemento da realidade que lhe faz objeção. O sujeito, por meio da Verleugnung, conserva a satisfação pulsional, ao mesmo tempo em que mantém sua relação com a realidade.

Em 1927, Freud escreve o texto “O Fetichismo”. A importância desse texto para a psicanálise não reside apenas no fato de trazer avanços quanto à questão do fetichismo, mas sobretudo em ter sido no confronto com esse processo, por ele chamado de Verleugnung, que Freud chegou à divisão (Spaltung) do eu. Onze anos depois, em seu “Esboço de psicanálise”, sustenta que esta divisão do eu é um fenômeno que se observa não só nos casos de psicose (e de perversão), como havia pensado até então, mas se estende também ao campo das neuroses:

o ponto de vista que postula que em todas as psicoses há uma divisão do eu não poderia chamar tanta atenção se não se revelasse passível de aplicação a outros estados semelhante à neurose e, finalmente, às próprias neuroses.6

Freud faz da Verdrängung (recalque) o mecanismo fundante das neuroses, mas ao sustentar a correlação entre desmentido e divisão do sujeito estabelece entre os dois mecanismos aproximações e diferenças. Enquanto o recalque opera sobre a representação incompatível, o desmentido opera no nível da inscrição dos traços, rastros (Spuren), consistindo em uma deformação ou desfiguração (Entstellung), operada sobre os vestígios inscritos, que falsifica a realidade e graças à qual a significação incompatível que esta comporta é encoberta e reduzida a um resto rejeitado.

A partir da leitura dos últimos textos freudianos, pode-se então afirmar que o desmentido é um mecanismo de estrutura. Freud descreve o processo de divisão do eu como expressão de duas premissas contrárias. O desmentido em jogo nesse processo deve ser entendido como uma negação radical que afeta o que vem do real. Ao se apresentar como crença e engano, convocado pelo que é insuportável, sustenta uma divisão irredutível. Não há cura para esta fenda que está no coração do ser. É esse o lugar da castração, da falta, da insatisfação inerente à pulsão sexual. Tem-se aí a própria introdução traumática da sexualidade na constituição do sujeito. A solução engenhosa do desmentido é uma mentira fundamental que nos protege da verdade intolerável: não há relação sexual.

o eu deve então decidir reconhecer o perigo real [...] e renunciar à satisfação pulsional ou rejeitar a realidade [...] de maneira a poder conservar a satisfação.

Por um lado, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição, pelo outro, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico [...] trata-se de uma solução bastante engenhosa; permite-se que a pulsão conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas, como se sabe, só a morte é grátis, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no eu, a qual nunca se cura [...] As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão do eu.7

Lacan é freudiano ao retomar o termo Verleugnung relacionando-o ao ato que institui um sujeito, sem que este possa se dizer senhor do ato que o constitui. Se tal ato é o que se realiza em uma análise, o próprio analista também está aí implicado. Por isso, Lacan reservou o termo Verleugnung aos analistas, chegando mesmo a afirmar que é ao nível do próprio analista que esse termo é empurrado ao “seu mais alto grau de patético”8.

Comecemos pelo ato que institui o sujeito. Lacan afirma que o sujeito é constituído pela repetição significante. Em A lógica do fantasma, interroga: “como definir o que é um ato?” E responde que o ato só se pode definir “sobre o fundamento da dupla volta”, ou seja, “da repetição”.9 Na topologia, a dupla volta engendrada por um só corte é a repetição à qual Lacan faz equivaler o ato que funda o sujeito. Ato que é significante, significante que se repete e que, ao repetir-se, instaura o sujeito como tal. Mas essa operação deixa um resto, pois em todo e qualquer ato há sempre algo que escapa ao sujeito do significante e que resta como causa do mesmo ato, permanecendo necessariamente velado.

Se, em uma análise, o ato instaura o sujeito, é o mesmo ato que torna possível modificar sua estrutura. Lacan afirma: “de um ato verdadeiro o sujeito surge diferente, em razão do corte sua estrutura é modificada.” Mas também deixa claro que o correlato do ato é o desconhecimento (méconnaissance) “ou, mais exatamente, o limite imposto ao seu reconhecimento pelo sujeito [...] é a Verleugnung.” Isto quer dizer “que o sujeito não o reconhece nunca em seu verdadeiro alcance inaugural, mesmo quando [...] é capaz de ter cometido este ato”.10

A Verleugnung é um fato de estrutura. O reconhecimento dos efeitos em jogo em um ato é barrado ao sujeito, pois, no instante do ato, o significante não representa o sujeito para outro significante, ou seja, o sujeito já não é representado de um significante para outro. Sua representância é outra: “o sujeito está no ato representado como pura divisão: a divisão é seu Repräsentanz11 – no instante do ato não há sujeito.

E o que está em jogo nessa pura divisão? Justamente a fenda, a falha fundante que será velada, recoberta, pelo véu do fantasma. Então, se a operação do desmentido é estrutural e constitutiva do ato que funda o sujeito como dividido é porque essa operação incide sobre o real dessa fundação e é por ele induzida. Lembremos a assertiva de Lacan: o real provoca “o seu próprio desconhecimento”.12

Em que esta questão da Verleugnung toca a formação do analista? A resposta de Lacan aponta ao real que está no fundamento das sociedades de psicanálise existentes. Se “Freud assumiu o risco de uma certa detenção”, talvez porque “a tenha considerado a única proteção possível para evitar a extinção da experiência”13, Lacan empurra os analistas a fazerem a opção pela Escola, onde é necessário o confronto com a questão do desmentido. Cabe aos analistas apostar em seu ensino e constatar os efeitos do real, ao invés de ocultá-los. Tal ocultamento favoreceria a hierarquia dos sábios e as pregnâncias narcísicas que preservam o véu do sujeito suposto saber sobre o laço entre os analistas, mantendo, com isso, uma “sombra espessa” sobre a prática e a formação.

Se as hierarquias didáticas velam o real em jogo na formação analítica é porque lhes falta articular a falha que está aí implicada, ao invés de encobri-la. Aos analistas que optaram pela Escola cabe, então, fazer essa articulação.

A falha de que se trata diz respeito justamente a ao ponto crucial do final de análise que é a passagem do analisante a analista e também – por que não? – ao laço entre analistas na Escola. É aí que Lacan localiza a “sombra espessa” que a “Escola pode dedicar-se a dissipar”14 e aborda esse ponto a partir de dois flashes. O primeiro diz respeito à “origem da psicanálise” e à necessidade de se manter a função do sujeito suposto saber. Essa é a “miragem em que se assenta a posição do psicanalista”.15 Lacan lembra como Freud precisou rejeitar o saber suposto a Fliess para que o saber psicanalítico se construísse. O que marca a origem da psicanálise é este segundo tempo em que o psicanalisante Freud passou a psicanalista. Segue-se a conclusão de que a análise “verdadeira e original só pode ser a segunda, ao constituir a repetição que da primeira faz um ato”.16

O segundo flash refere-se à situação vigente na época em que as sociedades analíticas existentes pensavam o final de análise como identificação do psicanalisante ao analista – “seu guia”. É nessa posição que Lacan encontra a consequência do rechaço da destituição do sujeito suposto saber: e é então que emprega na sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” o termo Verleugnung, dizendo:

atingimos a consequência do rechaço denunciado anteriormente (tortuoso rechaço [refus]: Verleugnung?) que só deixa o refúgio da palavra de ordem, adotada atualmente nas sociedades existentes, de aliança com a parte sadia do ego, que resolve a passagem a analista atribuindo-lhe, desde o início, essa parte sadia. Para que então sua passagem pela experiência?17

Lacan sustenta que é na passagem do analisante a analista que ocorre uma “virada em que o sujeito vê soçobrar a segurança que tomava deste fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real” e “nesse des-ser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber”.18

Nesse tempo de passagem, que é o da emergência do desejo do analista, podemos situar a Verleugnung, com seus efeitos de sombra e ocultamento. É na tentativa de dissipar estes efeitos de desconhecimento advindos do real que Lacan propõe o dispositivo do passe, dizendo:

de que lugar poderia então ser esperado um testemunho justo sobre aquele que franqueia esse passe, senão de um outro que, como ele, o é, ainda, esse passe, quer dizer – em quem está presente nesse momento o des-ser onde seu psicanalista guarda a essência do que lhe passou como um luto, sabendo assim, como qualquer outro em função de didata, que também a eles isso já vai passar.19

A questão do desconhecimento dos analistas recai justamente sobre o des-ser. No Seminário O ato analítico, Lacan diz que a consequência do ato analítico, ou seja, “o que ocorre no final da análise didática do lado do analista”, é desconhecido pelos próprios analistas. Estes apresentam

o mais arrebatado desconhecimento, [e] isto está ligado não tanto ao lado subjetivamente insustentável da posição do analista [...] mas bem mais àquilo que [...] recolhe quanto a ele [refere-se ao ato], nas consequências da análise, na própria estrutura do saber.20

O ato analítico é aquele que promove uma subversão da posição do sujeito em relação à estrutura do saber, a partir do instante em que o saber se presentifica como um furo, revelando que o que foi e é causa do processo – e, em última instância, causa do sujeito – é o real21, e d’isso os analistas não querem saber.

O que, então, o ato analítico promoveria em relação à posição do analista que, no início da análise, instaura o sujeito suposto saber? É em relação a tal questão que Lacan, na última lição do mesmo seminário, utiliza novamente o termo Verleugnung, fazendo referência à posição inaugural inerente ao ato psicanalítico que consiste em simular alguma coisa que o próprio ato de vocês vai desmentir.

E continua:

é por isto que eu havia reservado durante anos, posto ao abrigo, colocado à parte, o termo de Verleugnung que, com certeza, Freud fez aparecer a propósito de tal momento exemplar da Spaltung do sujeito; eu queria reservá-lo, fazê-lo viver ali onde certamente ele é pressionado ao seu ponto mais alto de patético, ao nível do próprio analista.22

O patético diz respeito ao ponto máximo e irredutível da divisão do sujeito. Ele é o modus afetivo em que a certeza que se precipita no ato analítico, paradoxalmente, advém em função de um desconhecimento necessário, que toca o seu limite como sujeito a um saber. Do lado do analista, a tentação do gozo se coloca no atingir o des-ser: concluído o ato, como operar com o des-ser e o pinçamento de gozo que sempre lhe fez obstáculo? Ou avançar com a psicanálise ou gozar com o próprio fim, forma sutil do desmentido.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em Documentos para uma Escola IV – O que é a Escola? Revista da Escola Letra Freudiana, nº0’’’.

2 A Comissão do Passe em 2005 era formada por Andréa Bastos Tigre, Fátima Vahia, Leila Neme, Letícia Balbi, Maria Cristina Ferraz Coelho, Myriam Fernández e Paulo Becker.

3 LACAN, J. “Entrevista” concedida à revista Panorama , registrada por Emilio Granzotto. Republicada em fevereiro de 2004 no Magazine Littéraire, 428 com o título “Não é possível haver crise da psicanálise”. Título original: “Il ne peut y avoir de crise de la psychanalyse” Un entretien avec Jacques Lacan, Paris-France, disponível em: http://www.magazine-litteraire.com/dossiers/dos_428.htm. Acesso em 25/07/2006.

4 LACAN, J. “Proposição sobre o psicanalista da Escola”. In: Documentos para uma Escola. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 0. Rio de Janeiro, circulação interna, p. 37.

5 FREUD, S. “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”. In: Obras completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 181. Quando este mecanismo se constitui no caminho preferencial do sujeito em sua relação ao desejo do Outro nos encontramos com a estrutura clínica da perversão, mas uma coisa está longe de se reduzir à outra.

6 ______ “Esboço de psicanálise”. In: Obras completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 232.

7 ______ “A divisão do eu no processo de defesa”. In: Obras completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 309.

8 LACAN, J. Seminário O ato analítico, lição de 19/06/1968, inédito.

9 _______ Seminário A lógica do fantasma, lição de 15/02/1967, inédito.

10 Ibidem, lição de 22/2/1967.

11 Ibidem, lição de 15/02/1967.

12 LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 - 1a. versão”. In: Documentos para uma Escola II – Lacan e o Passe, Revista da Escola Letra Freudiana, n° 0’. Rio de Janeiro, circulação interna, 1995, p. 9.

13 ______ “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In: Documentos para uma Escola, Revista da Escola Letra Freudiana, n° 0. Rio de Janeiro, circulação interna, p. 30.

14 Ibidem, p. 37.

15 Ibidem.

16 Ibidem, p. 38

17 Ibidem.

18 Ibidem.

19 Ibidem p. 39.

20 LACAN, J. Seminário O ato analítico, lição de 29/11/1967, inédito.

21 Em 9/11/1975 Lacan reafirma a relação do real com o desmentido, em sua Jornada de estudos da EFP, “um desmentido de onde se pode recebê-lo? Não se pode recebê-lo senão do real. É bem em que a verdade está aí interessada porque a verdade, eu tinha dito, não pode senão se semi-dizer, mas ela não pode concernir senão ao real. É disso que se trata. A relação desse desmentido com o real é certa”.

22 LACAN, J. Seminário O ato analítico, lição de 19/06/1968, inédito.