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Comentários sobre “Die Verneinung1 2

Eduardo Vidal 3

A escolha

Die Verneinung é um escrito ímpar na obra de Freud. Por seu ri­gor teórico e sua concisão lógica, o texto exige de quem o trabalha a po­sição de se ater ao pé da letra. Dedicamos-lhe, no segundo semestre de 1985, um seminário de leitura e comentário textuais. Este escrito reto­ma as notas recolhidas nessa ocasião. Realizamos, então, uma primeira versão do original para o português com que tecemos o comentário. Optamos por dar a conhecer a versão revisada mais tarde, durante um cartel de trabalho sobre “die Verneinung”. Nesta apresentação, fazemos corresponder os parágrafos do texto proposto em português aos do original; indica-se, desse modo, o movimento de translação significante que toca a impossibilidade inerente a cada língua. O leitor poderá acom­panhar a decisão tomada frente à palavra e à frase.

Comecemos pelo nome do escrito: Die Verneinung. Deparamos-nos aqui com a primeira dificuldade: negação ou denegação? Escolhe­mos o termo negação. Die Verneinung procede do verbo alemão verneinen que significa, no discurso corrente, “dizer não”. Die Verneinung não é, estritamente, um conceito, mas uma operação que age sempre sobre a frase. Está incluída, nesse registro lógico, a negação de uma pro­posição. Também “Verneinung” indica a negação gramatical referida por Freud no texto: das Verneinungssymbol, o símbolo da negação. Goethe nos orienta nesta direção quando, na boca de Mefistófeles, colo­ca este verso:

“Ich bin der Geist der stets verneint”

“Sou o espírito que sempre nega”.

Nossa opção circunscreve a tradução do texto de Freud ao con­texto estrito da língua alemã.

O outro termo – denegação –, cujo equivalente em alemão é o vocábulo Abweisung, resultaria, na nossa perspectiva, inapropriado para traduzir “die Verneinung”. A que significações remete o termo denega­ção em português? É uma negação que se especifica no campo jurídico: “o tribunal denegou o pedido”. Denegar um requerimento significa indeferir. Relaciona-se com a recusa, pela instância jurídica, de uma demanda, de uma petição, no sentido de não conceder, não aceitar. Traduzimos, portanto, por denegação o termo Abweisung, no primeiro parágrafo: “Nós compreen­demos que é a denegação, por projeção de uma ideia que está surgin­do”. O sentido jurídico presente no termo remete a uma não aceitação, a uma recusa daquilo que emerge na instância do Outro.

Na transmissão da psicanálise, realizada por Jacques Lacan, o ter­mo “die Verneinung” foi traduzido, por indicação de Jean Hyppolite, como dénégation. Dénégation constitui a marca distintiva de uma leitu­ra e de um ensinamento e, nesta mesma publicação, “denegação”, trans­ferido do francês, é uma referência constante. Die Verneinung foi revisitado pelos analistas, que acharam ali a fundamentação da teoria analíti­ca. Melanie Klein encontra subsídios para teorizar uma realidade primi­tiva do sujeito que se constitui como “dentro” e “fora”, povoada pelo “objeto bom”, introjetado, e pelo “objeto mau”, projetado. Porém, na série das aproximações realizadas pelos analistas ao texto de Freud, a leitura de Lacan é aquela que propõe extrair dos significantes freudia­nos a lógica da fundação do sujeito nos registros da experiência analíti­ca – R, S, I: real, simbólico, imaginário. Com Lacan, o escrito de Freud é o lugar privilegiado de demarcação do simbólico e do real sem media­ção – isso deve ser enunciado de forma atenuada – do imaginário. Essa leitura rigorosa introduz o termo dénégation indicando a operação que afeta o desejo na sua articulação discursiva: há implicação de sujeito. Denegação é o termo que responde, em parte, à transmissão do significante lacaniano. Porém, é necessário destacar que, no texto sobre o in­forme de Daniel Lagache, Lacan utiliza o termo négation.

Assim, na página 662 (Ecrits), escreve Lacan: “É aqui que deveria ser retomado o problema da origem da negação, se não se entende com isso nenhuma pueril gênese psicológica, mas um problema da estrutura, a abordar no material da estrutura”.4 Fala a seguir das partículas diferen­ciadas de negação nas línguas. Refere-se, depois, ao “significante primi­tivo da negação”, quando aborda a operação de elisão significante. É a tradução que, em 1960, fornece Lacan para a matriz da Verneinung.

A interpretação

Die Verneinung” mostra que a estrutura de discurso age na transferência. O sujeito recebe a sua mensagem do Outro e o discurso supõe a existência de dois lugares: daquele que fala e daquele que ouve. Isso faz com que a psicanálise não constitua, em sentido estrito, um diá­logo, pois o discurso supõe uma dissimetria. De que modo se patentiza essa dissimetria? O sujeito, habitado pela linguagem, é mais falado do que fala e enuncia que ele próprio desconhece a significação da sua mensagem. Essa estrutura discursiva outorga ao Outro – quem ouve – o poder de decisão no que se refere à dita significação. Em que termos o texto de Freud apresenta essa questão? Com a particularização do modo como os pacientes formulam certas ideias. Freud utiliza o signifi­cante Einfall que difere de Idée; prima a noção de algo que emerge, subitamente, na cadeia associativa, sem pensar, cujo equivalente se en­contraria em português no nível da expressão: “Me ocorreu...”.

Freud apresenta duas breves pontuações do discurso. A primeira frase: “Ago­ra, você pensará que quero dizer algo ofensivo, mas eu não tenho real­mente essa intenção”, indica o lugar do Outro (“Sie”) como endereço atual da frase. Nesse lugar, “quero dizer” (Ich will) pode enunciar-se, mas ao preço de um desconhecimento denegatório: “mas não tenho realmente essa intenção”. A estrutura da transferência, como colocação em ato dos dois lugares do discurso, autoriza a interpretação do analis­ta. Qual é o processo em jogo na articulação do discurso? Uma denegação por projeção. Como dito acima, Abweisung é um significante que remete ao campo do jurídico: dizemos que é a denegação de uma petição, após ter sido exa­minada por uma instância jurídica. Destacamos a existência de termos do vocabulário jurídico no escrito – AbweisungVerurteilungUrteil. A denegação é a recusa constituída na lei do discurso que toma consistência imaginária através do mecanismo de projeção. Esse termo, amplamente difundido no vocabulário analítico, passa a significar o movimento de colocar defensivamente um conteúdo do interior do sujeito no exterior. Há uma recorrência no pensamento à noção de sujeito “in­terior”, substância, que opera mecanismos de intercâmbio com o exte­rior. O equivalente topológico desse sujeito seria a esfera, superfície bilátera que divide o espaço em um interior e um exterior. A projeção nos informa da existência do outro que, na sua versão imaginária, revela um fato de estrutura. O sujeito se determina na materialidade dos significantes, em posição de exclusão à cadeia que se articula no Outro.

Na segunda pontuação, Freud se refere ao que o paciente enuncia: “Você pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho”. Podemos inferir, nesta frase, a questão do sujei­to constituída no campo do Outro. “A mãe não é”, é a resposta que aponta para a pergunta enigmática, formulada nas entrelinhas, do desejo do Outro. No tempo da resposta, a interpretação do analista não de­mora em produzir-se com a afirmação portadora de uma asserção de certeza: “É a mãe”. Qual é a operação da interpretação freudiana? Consistiria na transformação de uma frase introduzida por uma negação em uma afirmativa? Freud teria proposto apenas uma supressão da nega­ção gramatical na sua interpretação? Esse procedimento nos parece em relação às questões que o artigo levanta, tanto no campo da lógica como no da gramática. Não se trata, então, de uma “solução” simé­trica, onde um “não” é equivalente a um “sim” e vice-versa, procedimento este que reduziria “Die Verneinung” a uma formulação técnica sobre a defesa do ego. A intervenção de Freud extrai do enunciado o campo da enunciação fazendo vigorar a divisão fundante do sujeito. Suspende o “não”, mas atesta a denegação – Abweisung – na medida em que não procura reintroduzir o excluído nem completar o discurso, que é sempre falho.

Em “Construções em Análise” (1937), Freud reflete sobre os pa­radoxos do “não” e do “sim”. O analista interpela o valor aparente do “não” do paciente. Da mesma forma, um “sim” pode carecer de signifi­cação se não se acompanha do ato de relançar a cadeia associativa com a produção de novas lembranças. O “não” dificilmente é a prova de um legítimo desacordo. O “não” e o “sim” não constituem, então, em si mesmos, uma evidência da exatidão da construção. O “não” do pa­ciente não nega o que foi dito, mas assinala a incompletude da constru­ção: “não” foi dito tudo. E isso é verdadeiro. Porque tudo não pode ser dito, por uma questão de estrutura. O “não” em análise mostra que o Outro é barrado e, portanto, falho. Freud estabelece a interpretação a partir do lugar de falha do Outro e extrai daí a certeza do ato de pala­vra – “Nós retificamos: então, é a mãe”. Precipita-se o momento asserti­vo de concluir, impulsionado pela função da pressa. Tensão que perpas­sa a concisão desse escrito.

É como se o paciente dissesse, ratificando o ato: “Não me apraz – [ich habe keine Lust] – admitir isso”, frase que se inscreve, pela lei do discurso, além do princípio de prazer. Não há prazer nenhum em admitir o que é. “Não é a mãe” designa a relação do discurso ao Nome-do-Pai – inter­dito do objeto pela Lei. Outra escansão da frase “não é...” faz surgir a relação do sujeito ao ser. O significante instaura o lugar da au­sência, em que o sujeito se designa como faltante. Retorna no discurso, sob a função de desconhecimento do ego, sua falta a ser. “Não é” faz retorno como “não sou”, selando a sua desaparição no discurso, presentificando o que “a simbolização primordial deve à morte”. É na sutileza do discurso que Freud escuta os efeitos de fading do sujeito. Enunciação sutil, que se denuncia sempre que o enun­ciado falha na instabilidade dos elementos da cadeia, na indicação pro­nominal, na partícula de negação. O sujeito da enunciação, que o desejo atravessa, não se confunde com a cadeia do enunciado; ele é deduzido da fórmula da negação. “Não é a mãe” traz ainda a particularidade da elisão da língua alemã do significante meine, mantendo-se a equivocidade sobre o lugar de quem diz a frase.

Constata-se a dificuldade para designar o sujeito do inconsciente em algum lugar do enunciado. O inconsciente ex-siste ao dito e a sua ex-sistência se revela com a marca de uma radical estranheza. Freud consi­dera, no segundo parágrafo, um recurso do analista ao escutar o retorno do recalcado inconsciente. A sua tática consiste em propor que o pa­ciente diga aquilo que está mais longe de seu pensamento, o mais inve­rossímil. O que ele diz é confirmado pelo analista como sendo o mais exa­to. O sujeito diz, na mesma borda, o que lhe é estranho, porém íntimo, verdadeiramente íntimo. Ele não sabe o que diz. “Mais longe de seu pensamento” indica o topos do discurso como exterioridade que habita o sujeito.

Ainda no mesmo parágrafo, Freud assinala a estratégia da obses­são. O discurso do neurótico obsessivo constitui um paradigma do fun­cionamento da denegação. É o sujeito que, definindo-se como “tenho uma nova representação”, fica capturado na alienação infindável do pensar. Apresenta-se como um sujeito que aprendeu o que escutou na cura e possui um saber sobre a denegação que se tornou a pièce de résis­tencia para a denegação do saber. O sujeito permanece, então, na dúvi­da alienante sem encontrar “um” sentido. Sua estratégia neurótica poderia ser formulada assim: “se pensar portasse uma significação para o sujeito, logo não pensaria”. O “cogito” obsessivo se extravia no equívo­co do pensar e o sistema construído preserva o sujeito do encontro com a falha do Outro. Não há certeza, e sim reduplicação da ideia. Não há momento de concluir, mas eternidade do compreender com pro­telação da ação. A “covardia” da neurose repousa na permanente dene­gação do desejo. A ação do analista se contrapõe ao pensar denegatório e, fundada na convicção da existência do inconsciente, se precipita na frase: “É a mãe”. O psicanalista afirma, como sentido exato, o que a neurose rejeita.

Aufhebung freudiana

Passemos aos parágrafos terceiro e quarto, em que Freud estabele­ce o laço solidário da negação com o recalque. A negação é uma suspen­são do recalque, que entranha a aceitação intelectual do recalcado. O termo Aufhebung, que traduzimos por suspensão, é portador de signifi­cações contraditórias entre si: suprimir, abolir, mas também conservar. Essa suspensão temporária, que suprime uma das consequências do re­calque, age conservando-o. A Aufhebung possibilita que o recalcado pe­netre na consciência basicamente sem afetar o trabalho do recalque. A divisão subjetiva permanece no essencial com a separação entre inte­lectual e afetivo. O recalque opera recaindo sobre a representação, o intelectual, e produzindo, concomitantemente, um resíduo inassimilável: o afeto. A negação realiza a aceitação da representação sob a condi­ção de uma condenação – Verurteilung. A representação entra no dis­curso  marcada pelo “não”, é o certificado de origem, o “made in Germany” do recalque. A condenação é um juízo de negação que afirma, precisamente, a função inconsciente de juízo – das Urteil. O “não” da condenação constitui um “Ersatz”, um substituto imprescindível na fra­se para que o discurso se libere parcialmente de efeitos do recalque. “A criação do símbolo da negação possibilitou um primeiro grau de in­dependência dos resultados do recalque”.

Jean Hyppolite apresenta, em 1954, no seminário de Jacques Lacan dedicado aos escritos técnicos de Freud, seu comentário sobre “die Verneinung”. O comentário é antecedido por uma introdução de Lacan, que situa a questão da resistência no nível do discurso, no mo­mento em que este recai do lado da presença do analista. Há ainda a resposta escrita de Lacan a esse comentário. Os três textos formam um laço essencial na transmissão da psicanálise de orientação lacaniana.

O escrito, estabelecido a partir do comentário falado de Hyppo­lite, transmite o estilo de um filósofo que expõe sua interrogação clara e precisa do texto. Sua intervenção preeminente operou como causa na interlocução do trabalho de Lacan. Podemos demarcar, porém, a distância existente entre uma interpretação filosófica de cunho hegeliano, inscrita no discurso do mestre, e a pontuação analítica que visa o real do inconsciente.

Acompanhemos a argumentação de Hyppolite. Introduz a Verneinung de Freud com uma consideração sobre a estrutura do texto: “ex­traordinária”, “extraordinariamente enigmática”, “extremamente sutil”. Texto que, longe de ser de um professor, promove, causa uma inter­pretação. E Hyppolite apresenta a sua, após uma consideração sobre a conveniência de traduzir em francês Verneinung por denegação. O eixo de sua argumentação gira em torno de duas questões articuladas entre si: a necessidade de distinguir a negação própria do juízo da atitude de negação. O artigo de Freud proporia a denegação como origem da inte­ligência, ponto em que alcançaria toda a sua “densidade filosófica”.

Hyppolite aborda o texto pela “via regia” da Aufhebung, palavra que lhe é familiar pelo seu reconhecido trabalho sobre a obra de Hegel. A introdução da palavra se produz no marco próprio de uma denegação, quando Hyppolite reconhece a familiaridade com o termo, mas diz que não seria ele quem enunciaria os seus diversos destinos. Nesse ponto, Lacan intervém na denegação: “Mas, sim, a quem, senão a você, retornaria isso?”.5

O conceito de Aufhebung serviria de suporte para a interpretação que Hyppolite realiza do texto freudiano. A ênfase dada ao termo hegeliano conduz inexoravelmente à questão do ser da filosofia. É o discurso do ser, mestre, m’être, que se apresenta sob a forma do não-ser. O co­mentário de Hyppolite consegue realizar o ideal filosófico de reunir o ser com a inteligência. O intelectual, avatar da operação do recalque freudiano, toma um valor relevante na medida em que fornece uma consis­tência ao ser. O filósofo situa na Aufhebung, que não é ainda uma acei­tação do recalcado, o nascimento do pensamento, afetado, primaria­mente, pela denegação. Com Hegel, a luta mítica entre os dois comba­tentes assinala o momento em que uma negação ideal substitui a destruição do outro, para constituir-se o que é da ordem do intelectual. A denegação freudiana, reconhece o autor, difere em princípio da “ne­gação ideal” hegeliana. Isso não limita a ênfase dada à origem mítica da inteligência e do pensamento, que encontraria a sua gênese a partir da tendência da pulsão de destruição agindo no fundamento da denegação. Apesar das restrições levantadas, o próprio autor estabelece uma correspondência no ponto de destruição entre o mito hegeliano e o texto freudiano. Questão que é retomada no final do comentário, quando Hyppolite se pergunta se a pulsão de destruição dependeria do princípio de prazer. Lacan, em nota de pé de página6, salienta a maneira admirável de abordar a dificuldade teórica que o instinto de morte suscita na teoria freudiana. A negação realiza a sua função, não como tendência à destruição, nem como negação interna a um juízo, mas como “atitude fundamental da simbolicidade explicitada”. Inter­pretamos que Hyppolite precisa diferenciar a pulsão de destruição dos efeitos imaginários da destruição para conduzir o conceito ao registro do símbolo, enquanto condição do juízo e do discurso. Um passo im­portante, ainda insuficiente, é dado na direção de elucidar o instinto de morte na medida em que se desconhece a sua estreita ligação com o real.

Em um segundo tempo, Hyppolite analisa a intervenção freudia­na. Segundo o filósofo, no primeiro momento da interpretação, o sujei­to se depara com o que ele não é, do que se depreende aquilo que é. O recalque subsiste sob a fórmula da denegação. O analista, no segundo momento, como um combatente, obrigaria o paciente a aceitar na  inteligência o que negava. Houve uma negação primeira e, pela in­tervenção do analista, um retorno sobre essa negação, sem que com isso o recalque seja levantado. Tratar-se-ia, então, de uma “negação da nega­ção”, equivalente a uma afirmação. Aqui parece fechar-se o círculo da dialética hegeliana sobre o texto de Freud. Hyppolite chega a uma con­clusão unívoca que, a nosso parecer, reduz o campo de paradoxos no es­crito: a afirmação é apenas intelectual e, embora não enunciado por Freud, uma negação da negação. A Aufhebung é a operação que separa o inte­lectual do afetivo. O intelectual, autônomo, estaria na gênese do juízo e do pensamento. Para o filósofo, Freud visa construir um “tipo de gran­de mito”. Que outra alternativa senão interrogar o que está por trás do mito, “detrás da aparência de positividade em Freud”? O significante “derrière” se derrama no texto. O mito parece permitir um desdobra­mento em espelhos sucessivos e uma superposição de negações que não encontramos categorizadas dessa maneira no texto freudiano. Como úl­timo termo, encontra-se a operação primordial: a expulsão, Ausstossung, a negatividade que funda o juízo de atribuição. Haveria, talvez, um tempo mítico em que não existiria nada estranho ao eu – le moi, segun­do o autor. A expulsão produziria a primeira distinção dentro-fora, que Hyppolite aproxima da alienação e da hostilidade em Hegel. Após uma primeira partição, a negação da atribuição e a negação da existência se estabeleceriam, situadas ainda em um “aquém” da negação tal como aparece articulada simbolicamente no discurso. Se o ponto de partida é a necessidade de uma negatividade, no final do processo, atra­vés de negações sucessivas, espera-se encontrar uma superação: “todo o recalcado pode ser, de novo, retomado e reutilizado em uma espécie de suspensão”. Há um ideal de autonomia, que se esboça no comentário, quando Hyppolite continua: “que, de alguma maneira, em lugar de es­tar sob a dominação dos instintos de atração e de expulsão, pode produ­zir-se uma margem do pensamento, uma aparição do ser, sob a forma de não o ser, que se produz com a denegação”.7 A Aufhe­bung tornaria, assim, possível “a utilização do inconsciente” com a ma­nutenção do recalcado.

Lacan retorna à questão em 1964, no seu escrito “Posição do in­consciente”. Escreve:

Mais além, os enunciados hegelianos, mesmo se atendo ao seu texto, são propícios para dizer sempre Outra-coisa. Outra-coisa que corrija o laço de síntese fantasmática, conservando seu efeito de denunciar as identificações em seus logros. E nossa Aufhebung, que transforma a de Hegel, o seu logro, em uma ocasião de levantar, no lugar [lieu et place] dos saltos de um progresso ideal, os avatares de uma fal­ta.8

A aposta freudiana é Outra-coisa: deixar ser o que há de real na experiência do inconsciente. O escrito preserva o lugar dos paradoxos e evita soluções de síntese. O analista não pretende recriar o mito de ori­gem do pensar, embora formule que o juízo é inconsciente, fundado no trabalho da pulsão. Com a sua técnica, não busca estender o campo da consciência para produzir a aceitação da representação na inteligência. A Aufhebung freudiana não propicia uma reutilização do recalcado, mas é um sutil modo de funcionamento que tece a ligação entre Verneinung e Verdrängung. Em Freud, o acento se desloca do pensamento recalcado para a própria operação do recalque. O “não”, como marca de origem, aponta para a barra irredutível que separa significante e sig­nificado. O “não” opera no discurso a impossibilidade que o recalque originário, como inscrição do sujeito da enunciação, institui na estrutu­ra. É a falta de ser (manque-à-être) do discurso do inconsciente. O “não” está em correlação com a Ausstossung, a expulsão fundante do real. Certifica a perda a que o discurso condena, encarna o irrepresentável do real no significante, atesta o limite, o impossível d’alíngua.

O juízo e a ação

A orientação que Hyppolite imprime ao texto tende a aproximar termos que, em Freud, se determinam na sua diferença. Função de juízo não é equivalente a pensamento nem à intelectual. Nessa direção, Hyp­polite interpreta o mito de origem da inteligência e, apesar de sua ma­nifesta preocupação, sua pontuação desemboca inexoravelmente na psicologia da função. Freud estabelece uma distinção definitiva entre psicanálise e psicologia; a função de juízo é conjugada às pulsões origi­nais. Assim, Freud pode falar da “origem psicológica da função” sem, com isso, implicar um sujeito psicológico. O juízo é a função que, no discurso, afirma e nega. Age sobre o pensamento, cuja materialidade é o significante inconsciente, passível de ser formulado na dimensão do discurso. Enuncia-se o cogito freudiano na operação primária incons­ciente que trabalha, sem que isso se saiba, como rede articulada de pen­samentos – Gedanken. Eis aí a radicalidade da descoberta freudiana, a mesma que formula: “Negar é, no fundo, querer recalcar”. A função do juízo é indissociável da lei do discurso. Negar é o exercício da fun­ção que afirma o elemento irredutível – a barra separadora de signifi­cante e significado –, possibilitando o retorno de certos significantes que, “liberados” do recalque, estão novamente à disposição na cadeia discursiva. Freud nos apresenta o inconsciente como superfície de dis­curso de estrutura moebiana, sem dentro e fora, nem superfície nem profundidade; uma única borda em que o significante precipita o laço so­cial: como articulação, como materialidade e como barra. O recalque não constitui apenas um jogo de forças quantitativas, mas uma opera­ção que intervém ao nível dos elementos instáveis da cadeia, uma aspira­ção que provoca o momentâneo e limitado desaparecimento de um ele­mento. Uma palavra falta, engolida pela hiância que se abre para fechar-se. Em contrapartida, negar permite, ainda, que o significante, precedi­do do “não”, possa ser chamado à cadeia, com a manutenção do essen­cial do recalque.

A função do juízo deve tomar duas decisões. Uma decisão impli­ca uma determinação que, no discurso, conduz a uma resolução. O juí­zo deve desembocar em um ato conclusivo que acarreta modificações definitivas para o aparelho. Trata-se de uma única função de juízo que se realiza em dois tempos. Atribuição e existência, em sentido estrito, correspondem às duas decisões do mesmo juízo, cuja topologia seria um oito interior. Examinemos a primeira decisão: atribuir ou negar uma qualidade a uma coisa. Nos significantes de Freud, não há suposição de sujeito que realize as decisões. Trata-se de um juízo que age no lugar on­de o sujeito virá a ser: “Deve decidir-se...”, frase cujo sujeito gramatical – o pronome “se” adotado por nós para traduzir uma forma passiva do verbo alemão – destitui qualquer suposição de um sujeito no lugar do agente. Isso nos permite estabelecer uma pergunta em relação ao lugar em que esse juízo se desencadeia. Assinalemos que é no campo do Outro que ele tem vez ou, ao menos, “primeira” vez, possibilitando-se uma distinção pré-subjetiva de dentro e fora. Nesse tempo, estão em ação os significantes do Outro, mais precisamente, o tesouro do significante, a pulsão. E o enlace necessário do juízo à pulsão. A língua de pulsão – Sprache – é a Vorstellungsrepräsentanz.

As pulsões orais são a língua, que será falada entre os lábios – “expresso na língua das mais antigas moções pulsionais orais”. Ao abor­dar a pulsão como língua, Freud afasta toda possibilidade de pensar as pulsões ditas primárias como constituídas fora do campo da lingua­gem. O que se ordena, em termos de pulsão, padece da estrutura grama­tical que uma língua impõe. O texto transcreve a seguir as frases gra­maticais em que a pulsão oral se conjuga “Eu quero comê-lo/cuspi-lo”. O pronome “eu” indica o sujeito gramatical da frase, que antecipa a es­trutura do fantasma. A pulsão responde à interpelação significante do Outro. “Eu quero...” – querer, wollen – faz nó com “isso deve” – de­ver, sollen – frases que veiculam, longe de qualquer suposição de exis­tência de um dispositivo inerente à necessidade, o que há de imperativo ético na pulsão. A pulsão habita a função orgânica numa relação que não é nem de apoio nem de complementariedade mas de subversão. A pulsão é concebível apenas porque o sujeito fala e, mais ainda, ele fala sem saber que fala. Nessa coabitação com a função, a pulsão introduz a gra­mática e, nas vozes verbais, se conjugam as reversões relativas à fonte e ao objeto pulsionais. E, por uma transferência que é possível apenas na es­trutura do significante, a frase elementar da pulsão oral: “Quero comê-lo/quero cuspi-lo” se desdobra, sob o efeito de deslocamento, em outras que consolidam a partição primeira; instaura-se a distinção “em mim/fora de mim”, como condição de uma topologia subjetiva. Ao nível do eu-prazer, nos deparamos com o funcionamento automático de um apa­relho, um mecanismo. A introjeção, mecanismo próprio do simbólico, sinaliza o movimento da fundação do traço a partir do campo do Outro: precipita-se uma marca de inscrição, a do ser vivente afetado pelo signi­ficante. Há um resto da operação de inscrição. Concomitantemente de­termina-se uma expulsão radical com a produção de algo opaco ao sig­nificante que se recorta “fora de mim”. Werfen significa o movimento de lançar aquilo não assimilável mantido fora da primeira inscrição. A partição “dentro/fora” se recobre e se reveste da qualidade. No nível do eu-prazer torna-se efetiva a atribuição da qualidade bom/mau, útil/nocivo. O “dentro”, inscrito no simbólico, porta a propriedade do bom; já o estranho ao eu, o que está “fora” – real primeiro –, é mau. A atribuição é, na lei do princípio do prazer, a regulação do significante no inconsciente, segundo uma escala do Lust ao Unlust. A atribuição sela a impossibilidade do discurso para apreender a coisa. A coisa, das Ding, é tributária da lei da palavra. A coisa – escreve Lacan – é “a pri­meira coisa que pode separar-se de tudo aquilo que o sujeito começou a nomear e articular”.9 Pela ação do significante inconsciente, a coisa se situa no horizonte como impos­sibilidade. A lei do Lustprinzips rege a distribuição significante em tor­no do real que, enquanto real, possa ser “garantia da Coisa”. Freud es­creve uma coisa a ser distinguida da Coisa. No Projeto, Freud funda o caráter irredutível da coisa: não há traço, atributo ou representação da coisa. A coisa é irrepresentável, condição de toda representação. Mas uma coisa, o termo acompanhado do artigo indefinido, é passível de predicação. Atribuir uma qualidade já é uma metáfora, uma oposição significante elementar que, impregnada de coloração imaginária, man­tém no ato da atribuição a distância da coisa.

A Bejahung, afirmação primeira, correlacionada a uma inclusão significante – Einbeziehung ins Ich – não é “outra coisa, senão, a con­dição primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser”.10 Comporta pois uma Ausstossung aus dem Ich, uma expulsão do eu, que constitui o real excluído da ordem do simbólico.



A segunda decisão, a da existência real de uma coisa representada, se funda sobre esta partição entre simbólico e real. Como sucessão da Ausstossung primeira, se determina o real como fora da simbolização. A negação – die Verneinung – sucessão da Ausstossung, se estende no do­mínio do princípio de realidade. Na égide da lei do prazer, o juízo se limitava a admitir no eu uma coisa em função da sua qualidade. A nega­ção se estabelece sobre a possibilidade de uma Bejahung, quer dizer, so­bre uma frase afirmada, que pode ser riscada: é a elisão significante. A elisão está na matriz da Verneinung e determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante. “Propriamente, não é, senão, alargamento do corte onde se pode dizê-lo residir na cadeia significante, visto que é o elemento mais radical na sequência descontínua e, como tal, o lugar em que o sujeito assegura sua subsistência de cadeia”.11 O juízo como existência não encontra o objeto – finden mas procura reencontrá-lo – wiederzufinden. Não há correspondência entre sujeito e objeto, pressuposto de toda teoria do conhecimento. Deve-se corroborar a existência real de uma coisa representada, em outras palavras, se uma coisa existente como representação no inconsciente pode ser, ain­da, reencontrada na percepção. Está caracterizada a diferença entre Vorstellung – a representação como repetição da percepção – e o obje­to apresentado na própria percepção. Essa não-coincidência, o corte en­tre representação e percepção, funda o lugar do inconsciente como ins­crição da diferença. Nesse segundo tempo, já não se trata de admitir e incluir na cadeia uma representação segundo o critério da qualidade. Busca-se reencontrar algo que já foi afirmado. É uma questão de garan­tia, ou melhor, de fiança. Freud escolhe a palavra Bürgschaft e, não o vocábulo Garantie. Bürgschaft é a fiança como ato que abona uma obri­gação com o Outro. É o estabelecimento de uma garantia pela existên­cia de um pacto; é uma confiança feita no outro. Trata-se da dimensão de fidelidade – fides – que a lei da palavra afirma. No primeiro tempo, o aparelho se satisfazia com a existência da representação – a sua afir­mação – como garantia do representado. Mas, nesse segundo, é a inclu­são da ausência que provê uma fiança duradoura no funcionamento psíquico.

A Verneinung afirma o sujeito no lugar em que uma coisa pode deixar de existir. Pelo princípio criacionista do significante, a coisa já “era”. O sujeito vem a esse lugar na ignorância de sua causa e, do real, recebe a condição de ser do desejo. A experiência analítica não concede nenhuma consistência ao “âmago de nosso ser” – Kern unseres Wesen –, o desejo inconsciente. O sujeito, inconsistente na cadeia significante, é introduzido na dimensão de falta de ser. O desejo é a metonímia in­cessante dessa falta. A Verneinung funda a pergunta sobre a existência e abre a questão da determinação do sujeito do desejo na cadeia signifi­cante. Desse modo a Verneinung deve ser abordada no material da es­trutura. A prova de realidade instaura uma interpelação no nível da repre­sentação. Decidir sobre a existência é uma ação que não recai sobre a realidade do mundo exterior, mas sobre a fiança a outorgar a uma re­presentação. No cerne de sua função estaria das Ding, a coisa a ser distinguida das coisas representadas. Das Ding comanda a tendência ao re­encontro, orientando a posição do sujeito em relação ao objeto. O esta­tuto do objeto é indissociável do reencontro embora, em sentido estri­to, nunca tivesse sido perdido. A prova da realidade exige e força a re­presentação a encontrar sua única fiança: a de veicular uma falta. A pro­va de realidade trabalha na delimitação do buraco no simbólico: a falta fundante do campo da representação. Simultaneamente deve estabele­cer um corte, um freio na tendência que conduz o aparelho na direção do gozo alucinatório. Trata-se de reconhecer que o objeto está também fora, subsiste e persiste “apesar” das ligações estabelecidas no nível das Vorstellungen. Reencontrar o objeto, tarefa desta prova, consiste numa busca orientada através de desvios, rodeios entre Vorstellungen. Recircare – lembra Lacan – é fazer o contorno do objeto sempre faltante. A coisa, no além, indica o lugar de um gozo interditado pela lei. A re­presentação, entre presença e ausência, realiza sua potência de significante. Torna presente o objeto que já não precisa estar à mão – vorhanden sein –, existir fora. Em contrapartida, a existência da re­presentação marca de impossibilidade o encontro com o objeto. Deve, pois, certificar-se de que o objeto ainda existe, está presente, também, no fora. Do objeto não há ideia nem representação: o reencontro afirma que sempre faltou. Furo no simbólico, cujo correlato é um Outro sepa­rado do gozo. A prova da realidade, para evitar o engano, o extravio do aparelho na busca da satisfação, deve estabelecer o limite nas modifica­ções e deformações das representações. A prova age sobre a economia do gozo – a satisfação real – extraindo, destacando, separando uma parte. O aparelho não busca apenas constatar a falta que o objeto constitui; ele trabalha para perdê-lo. Os objetos, que outrora traziam sa­tisfação real, devem ser perdidos. A condição da prova de realidade é o objeto perdido, o resto caído de uma outra satisfação. Exerce uma reti­ficação, colocando o sujeito na trilha daquilo que o causa como desejante. Consolida-se, nesse nível do funcionamento psíquico, a distinção entre subjetivo e objetivo.



Na álgebra lacaniana, o objeto perdido tem função de a. A prova de realidade supõe o tempo da perda ocasionada no real do gozo. Escre­vemos %, o Outro barrado, para indicar a operação de interdição do gozo do Outro. O objeto a é o resto caído dessa operação de separação no campo do Outro. O objeto a patentiza essa perda e circunscreve um tempo intermediário entre gozo e desejo. O objeto perdido é condição absoluta do trabalho da prova de realidade e concomitante­mente do surgimento do desejo.

Determina-se a distinção de duas regiões, de dois elementos hete­rogêneos. O subjetivo, representado, “dentro”. O objetivo, real, “fora”. Lacan retoma a questão no lugar em que Freud a enunciou. O sujeito, $, articulado no nível das Vorstellungen, é representável por um significante para outro significante. O sujeito se mantém indeciso da vacilação entre os dois significantes. O objeto a, do real, irrepresentável, faz sua aparição separado do sujeito. Aporta à indeterminação subjetiva a determinação da causa real, que para a vacilação subjetiva. É no fantas­ma que sujeito e objeto são “relacionados”. O fantasma é a resposta ar­ticulada à questão enigmática do desejo do Outro, a estrutura onde o desejo se regra. O campo da realidade é sustentado pelo fantasma. Freud nunca considerou a realidade como padrão objetivo de medida ao qual o sujeito deveria adaptar-se. A dita realidade é atravessada pelo fil­tro do fantasma. O fantasma fornece consistência ao “pouco de realida­de” em que o sujeito se encontra suspenso ao objeto a que causa o desejo.

A prova de realidade é o trabalho da pulsão, enquanto operação permanente de corte. Exige uma topologia que possa ir além da primei­ra distinção “dentro/fora”. O losango do matema lacaniano escreve a to­pologia de corte que produz a borda funcionante em um processo cir­cular. O corte proporciona a escritura do fantasma destacando os dois elementos. Sujeito e objeto se conjugam no corte: $<>a.

Passemos ao parágrafo seguinte. Freud separa cuidadosamente o julgar, como ação intelectual, do pensar. O juízo – das Urteil – remete à determinação de uma decisão e, no campo jurídico, à sentença emiti­da por um tribunal. O julgar é uma ação que decide a escolha da ação motora, escreve Freud. Que implicações traz o dizer de Freud para a éti­ca da psicanálise? A ação comporta, desde sempre, um questionamento ético. Em primeiro lugar, Freud considera o julgar como uma ação que se determina no simbólico – intelectual –, uma decisão que define a es­colha da ação eficaz para orientar o aparelho na direção de produzir uma transformação do mundo exterior. Em segundo lugar, o julgar pre­cipita uma passagem do pensar ao agir. O pensar é um tatear simbólico com função protetora para o aparelho, mas a permanência no pensar suspende-o a uma protelação infindável. O ato de julgar se conclui numa decisão que opera contra a inércia do pensar e conduz o sujeito a agir. A psicanálise não considera a ação apenas como uma descarga adequada ao fim, mas interpela na ação o desejo que a habita. A passagem da ação implica uma retificação da posição subjetiva em relação à causa do desejo, consecutiva à colocação em ato da perda de objeto, que vem ao lugar da causa.

O julgar procede de uma função originária do aparelho, aquela que tem lugar no extremo da percepção. O aparelho não possui auto­nomia, pois, está imerso no leito do desejo do Outro. O eu, que inter­vém inicialmente no nível da percepção e continua seu trabalho nos pro­cessos de pensamento, é instância do simbólico coordenado ao desejo a ser distinguida da função de desconhecimento do ego imaginário pro­posto por outras interpretações. Entendemos o caráter ativo da percep­ção incluída na dimensão do desejo: o estímulo, que sinaliza a incidên­cia desse desejo, provoca o investimento – Besetzung – do eu. A sua ação de prova limita a intensidade e a extensão do investimento feito de pequenos avanços e retiradas. Tenta-se evitar o logro das formas ilu­sórias apresentadas à percepção. O julgar é a ação que deve estabelecer a escolha e a decisão e levar o aparelho ao ponto de certeza de sua ação.

Negação ou negativismo

Abordaremos o último ponto de nosso comentário. O julgar, es­creve Freud, é a evolução objetivada da inclusão no eu e da expulsão do eu, realizadas conforme o princípio de prazer. A Bejahung – afirmação –, substituto da unificação, pertence a Eros. A negação, sucessão da ex­pulsão – Ausstossung –, pertence à pulsão de destruição.

A Bejahung como substituto – Ersatz – caracteriza, no nível do significante, o efeito metafórico: um significante substitui sempre um outro. A afirmação é substituto da unificação como ação de Eros. En­contramos um correlato de Eros na linguagem: a articulação de elemen­tos como tentativa de estabelecer a relação. Há do um. O um do nexo, da ligação, essência da cadeia significante do simbólico. A Bejahung pri­mordial porta sobre o significante, escreve Lacan. Precedente necessário à ação da Verneinung, como a confissão do significante que ela anula. A afirmação é inscrição significante do Nome-do-Pai. A afirmação só se realiza com a expulsão – Ausstossung que funda, na estrutura signifi­cante, o real excluído. “Que ela esteja ramificada sobre a morte, só a linguagem, no final das contas, porta o testemunho”, disse Lacan. A ne­gação – Verneinung – é sucessão da expulsão e pertence à pulsão de destruição. Aponta para a ex-sistência do real à cadeia significante, para a falha que perpassa os elementos do discurso. O um da desunião, da dispersão, da hiância. A pulsão de destruição, a ser entendida com Freud, como “muda”, sem representante, metaforiza isso que do real determina a significância. O desempenho do juízo, em sentido estrito, só se tornou possível pela existência do “não”; em última instância, se reconhece na sua causa a própria pulsão de morte. Mas só se torna efe­tivo a partir da amálgama, da mistura das duas moções pulsionais primá­rias. Eros como unificação está no ato inaugural em que o repre­sentante se fixa à pulsão, o recalque originário do representante – die Urverdrängung. Assim, o “não” da condenação – Verurteilung – é a própria afirmação do juízo, que realiza a inscrição de algo dessa falha na linguagem.

Freud diferencia a negação do negativismo de alguns psicóticos. O mecanismo que determina a psicose está fora do recalque do significan­te. É uma Verwerfung – rejeição – que exclui toda possibilidade de Bejahung. Denominamos forclusão a ausência de afirmação primeira do Nome-do-Pai. A Verwerfung é rejeição do juízo primeiro: carência de efeito metafórico que impossibilita significar a realidade psíquica com a marca do falo. Os efeitos dessa carência significante retornam como gozo no real. Prazer universal de negar, negativismo não são formas de negação, mas sim intrusão de gozo, petrificação de objeto. E a ausên­cia de laço social, o fora-discurso da psicose.

O Nome-do-Pai é o nó que enlaça as duas pulsões. A sua forclusão, na estrutura da psicose, acarreta o desamalgamar pulsional – die Triebentmischung – com a subtração dos componentes libidinais. Ca­rência de nexo, de união, como consequência da ausência da estrutura metafórica. Não há lugar do Outro que, enquanto Pai, possa inscrever a negação na linguagem, a pulsão de destruição em Eros. Há, no início da psicose, respostas que, frente à irrupção no real daquilo que foi forcluído do simbólico, tentam remedar o mecanismo de Verneinung. Mas fracassam. O psicótico, diz Lacan, está absolutamente desprovido da possibilidade de fazer funcionar uma negação adequada ao fenômeno que se desencadeia no real. Tenta suprir a carência de mediação simbóli­ca com uma reação em cadeia, uma proliferação imaginária. A impossi­bilidade de negação na psicose se presentifica na verdade do gozo negativista excluído do discurso. É o abismo insolúvel que separa a Verwerfung da Verneinung.

Die Verneinung escreve de modo contundente o paradoxo do ser falante. Não há nenhum “não” do inconsciente. Freud, em “A interpreta­ção dos sonhos”, define o discurso do inconsciente pelas suas proprie­dades que diferem daquelas exigidas pelo discurso da lógica formal. O passo freudiano assinala que o inconsciente se rege por outra lógica e, no que tange à negação, exclui o princípio de contradição. A função de negação, sistematizada a partir de Aristóteles, exclui o terceiro; uma coisa não pode ser negada e afirmada ao mesmo tempo em relação ao mesmo atributo. O que se enuncia ao nível do inconsciente é de outra ordem. Carece do “não”, fazendo dessa carência a verdade do seu dis­curso. O inconsciente nos confronta com o real e, no real, não é questão de contradição. A negação, na ordem do discurso, se exprime no nível da instância do eu. A prova definitiva da descoberta do inconsciente é dita nas frases: “não pensei isso” ou “não (jamais) pensei nisso”. Isso não se pensa jamais. Nenhum “não...” do inconsciente, é o que atesta o real da ausência de relação sexual. A linguagem supre essa ausência e, com isso, mascara a morte. Concluímos com as palavras de Jacques Lacan: “é pensável que toda a linguagem não seja feita senão para não pensar a morte que, com efeito, é a coisa menos pensável que seja”.

Notas e referências bibliográficas

1 Publicado em Die Verneinung. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 5.

2 Este texto reúne os comentários realizados no Seminário da Letra Freudiana sobre “Real, simbólico, imaginário” em agosto-setembro 1985. Agradeço a co­laboração de Benita Losada, cujas anotações do seminário foram de um valor inestimável para o estabelecimento deste texto. Meus agradecimentos especiais a Ferdinand Reis, pelas indicações precisas de termos, empregos e construções na língua alemã com o traço “vienense”.

3 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

4 LACAN, J. “Remarque sur le rapport de Daniel Lagache”. In : Écrits. Paris : Éditions du Seuil, 1966, p. 622.

5 ______ “Commentaire de Jean Hypolite sur la ‘Verneinung’”. In : Écrits, op. cit., p. 880.

6 (Écrits, pag. 886)

7 Ibidem, p. 886.

8 ______ “Position de l’inconscient”. In : Écrits, op. cit., p. 837.

9 ______ Le séminaire, livre VII, L’éthique de la Psychanalyse. Paris : Éditions du Seuil, p. 100.

10 ______ “Réponse au commentaire de Jean Hypolite”. In : Écrits, op. cit., p. 388.

11 ______ “Remarque sur le rapport de Daniel Lagache”. In : Écrits, op. cit., p. 666.

Bibliografia:

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______ “La Negación”. Cadernos Sigmund Freud n.9. Escuela Freudiana de Buenos Aires (trad. G. Iovine e I. Reich).

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Hyppolite, J. Commentaire parle sur la “Verneinung” de Freud - Appendice I, em Écrits, de Jacques Lacan, Seuil.

Lacan, J. Les Écrits Techniques de Freud. Le séminaire, livre I, Éditions du Seuil.

______ Les psychoses. Le séminaire, livre III. Éditions du Seuil.

______ L’éthique de la Psychanalyse, livre VII. Éditions dú Seuil.

______ “L’Étourdit”. Scilicet 4. Éditions du Seuil.

______ “Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la “Vernei­nung” de Freud”. Écrits. Seuil.

______ Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la “Verneinung” de Freud. Écrits. Seuil.

______ D’une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose. Écrits. Seuil.

______ Remarque sur le rapport de Daniel Lagache: “Psychanalyse et structure de la personalité”. Écrits. Seuil.

______ Subversion du sujet et dialectique du désir dans 1’inconscient freudien. Écrits. Seuil.

______ Position de 1’inconscient. Écrits. Seuil.

Quarto, nº VI. Publication de 1’École de la Cause Freudienne à Bruxelles.