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$ a e a posição do analista feita do objeto a1

Sofia Sarué 2

O sujeito se constitui no campo do Outro, marcado pelo significante. O objeto a é o resto dessa operação e pode ser reconhecido, estruturalmente, como análogo ao objeto perdido de Freud. Como resultado dessa operação $ e a, termos do fantasma, situam-se no campo do Outro; já do lado do sujeito está o que o constitui como inconsciente, o Outro enquanto inatingível.

Lacan enumera os objetos a, distinguindo cinco estádios na sua constituição que correspondem às cinco formas de perda enunciadas por Freud e, também, como distintas modalidades de inscrição corporal. Em todos os níveis e sob as diversas formas que se manifesta, o objeto a tem sempre as mesmas funções: explicitar o modo como está ligado à constituição do sujeito no campo de Outro e o representa.  

Inicialmente o falo é colocado na série dos objetos a, mas em uma posição deslocada, pois tem uma função significante diferente dos outros quatro, que são pedaços do corpo próprio, profundamente ligados e separáveis deste. Ele indica a falta no nível sexual, a falta de mediação genital entre o homem e a mulher, que faz obstáculo à relação sexual.

A designação desses objetos, suas formas e versões, situam-se em uma sincronia e revelam uma estrutura dinâmica. Desse modo, há conexões entre os objetos a bem como nas pulsões, nas quais o Drang ou impulso da pulsão empresta sua permanência das bordas corporais e uma pulsão consiste, apenas, em conexão com as outras três.

O seio, as fezes, o olhar e a voz só têm função de objeto a por serem associáveis entre si, em uma estrutura determinada pelas inversões da demanda e do desejo nas relações do sujeito ao Outro, em um trajeto ascendente e descendente, como nas pulsões.

O seio e as fezes, do trajeto ascendente, são objetos em jogo na demanda, associados à ordem da necessidade, concebida como podendo ser satisfeita. Já o olhar e a voz situam-se no trajeto descendente e são objetos em jogo no desejo.

É necessário precisar, no entanto, que o desejo do Outro está por trás da demanda, posto que esta se exprime pela linguagem. O objeto oral, ao inaugurar a função do desejo, introduz “a condição absoluta do desejo do Outro”.3

Cabe ressaltar a pergunta deixada em suspenso por Lacan sobre a quem pertence o objeto a, já que por estrutura ele não pertence, pois diz respeito à fundação do sujeito no campo do Outro. A fórmula do fantasma $a especifica que o objeto é condição necessária para o sujeito e o sujeito é condição suficiente para o objeto a.

Essas afirmações nos remetem ao desejo do analista operando na instauração da demanda de uma análise, assim como ao lugar de agente, como semblant de objeto a, que o analista ocupa no matema do discurso analítico.

O discurso analítico se situa em uma estrutura de grupo, na qual o silêncio corresponde ao semblant de dejeto que o analista encarna para o analisante, fazendo funcionar em ato a conexão dos objetos a como vetor na direção da cura e de um final de análise.   

Lacan traz à luz dois objetos e determina seus fundamentos, que permaneceram à sombra na teoria freudiana, embora tenham papel de uma instância ativa: o olhar e a voz.

A voz suporta o desejo do Outro, sendo que a pulsão invocante ocupa um lugar privilegiado por ser mais próxima da experiência do inconsciente, estruturado como uma linguagem. O desejo ao Outro, no qual há certa obscuridade, é representado por uma dimensão aberta pelo olhar.

No nível escópico, o do fantasma propriamente dito, lidamos com a potência no Outro, que é apenas a miragem do desejo humano. A relação do sujeito com o olhar é sempre de logro, ele se apresenta como o que não é e o que se dá a ver não é o que se quer ver. É por isso que o olhar funciona como objeto a, isto é, no nível da falta. Ele tem, no entanto, uma dupla dimensão: a da visão com o objeto ideal do olho e a que se inscreve sob a forma do olhar. Quando, ao olhar no espelho, vemos surgir o olho, há uma porta aberta para a angústia, pois a falta falta.

Ao trabalhar a lógica do fantasma, Lacan precisa que no fantasma não se trata do que se quer ver, mas por onde ou por quem o sujeito é olhado; ele fica congelado pelo olhar do Outro, ao se oferecer sem cessar ao seu desejo.

A função determinante do objeto a na cisão do sujeito é apreendida na estrutura do fantasma – $a –. O fantasma é a resposta do sujeito à hiância no campo do Outro e nele estão presentes as quatro formas do sujeito fazer laço com o Outro. Essas formas se evidenciam nas quatro operações do fantasma especificadas no poinçon – ◊ –: alienação, separação, implicação e equivalência lógica.

A posição do analista, “feita substancialmente de objeto a”,4 suporta em tempos e escansões distintas, a singular forma do laço que o analisante estabelece com o campo do Outro e está ligada à constituição deste sujeito no lugar do Outro.

A função do fantasma na economia do sujeito é sustentar o desejo em sua função ilusória, sem ser ele mesmo ilusório; ele se constitui como o representante de toda representação possível do sujeito. Trata-se de uma tela não especularizável que tem o sentido da instituição de um real que cobre a verdade; a natureza dessa verdade, coberta e visada pelo fantasma, diz respeito ao gozo enquanto impossível.

Para falar do fantasma na experiência analítica, Lacan utiliza uma bela palavra da língua francesa: praticable, o praticável na cena teatral – “espaço camaleônico, nos bastidores do teatro, onde tudo se transforma e se reinventa a todo o momento, ganhando novas funções”5 – e que funciona como um trompe-l’oeil.

A presença de um praticável na cena introduz uma perspectiva, um jogo do qual participa tudo o que concerne, no domínio visual, à ordem da ilusão e do imaginário; mas, se passamos por trás do praticável, não há engano, ele está sempre ali, não é imaginário.

É disso que se trata no percurso de uma análise, posto que o fantasma sustenta o desejo em sua função ilusória, sem ser ele mesmo ilusório. É necessário ter levado bem longe as coisas em uma análise para tocar o objeto a enquanto real, ou seja, deparar-se com que objeto o sujeito foi para o desejo do Outro. Há um momento da análise, nos alerta Lacan,6 em que o analisante corre o risco de aí se fixar, pelo fato de encontrar sua verdade no objeto a.

O fantasma, enquanto suporte da pulsão, tem uma estrutura lógica e, portanto, gramatical. Como bem articulou Freud em “Uma criança é espancada”, ele se enuncia por uma frase gramatical, que deve ser tomada como um axioma, isto é, como uma proposição que tem sempre uma significação de verdade, sem exigência de demonstração.

Apesar do fantasma se expressar por uma frase gramatical, articulada a uma lógica, ele tem a particularidade de se mostrar. Apresenta-se, assim, como um quadro, pois ao falarmos em fantasia inconsciente, está implícita a fantasia de vê-la. 

No seminário XIII, Lacan trabalha longamente o quadro As meninas de Velásquez, para que este seja tomado como apólogo e como referência de conduta para o psicanalista, pois o campo da visão comporta facilmente o que há de ilusório no sujeito suposto saber. Decanta nele a função do olhar, sempre em jogo em uma psicanálise, operando de modo sutil – presente e velada ao mesmo tempo.

Na sua exposição, ele recorre à desmontagem da geometria perspectiva do quadro, para mostrar a estrutura visual do fantasma, no qual o sujeito está cindido entre ver e ser visto. Revela, assim, a estrutura furada por esse olhar, enquanto objeto que falta e situa o analista operando nela.

No quadro, Velásquez coloca em cena um instante que conjuga o ver e o ser visto, o pintor pintando a tela, que aparece virada e da qual se vê os bastidores, o suporte. A presença do quadro no quadro tem a mesma função do praticável na cena teatral, permitindo liberar seus personagens da função de representação. Todos os personagens estão, portanto, em função de Vorstellungsrepräsentanz – representante da representação –, o que nos remete à tela do fantasma como representante de toda representação possível do sujeito.

Isso faz com que o espectador seja capturado pelo quadro, por sua construção. Ela nos reporta à subversão do sujeito operada pela psicanálise; ao sujeito conforme a banda de Moebius, de modo a ser necessário dar duas voltas pulsionais para que algo da divisão do sujeito possa ser captada.  

Quando Velásquez se introduz no quadro, não se pinta como em um espelho, pois a obra não é um espelhismo, mas uma armadilha de olhares. O olhar do pintor, nos diz Lacan, tem um aspecto sonhador, ausente, como que dirigido a um desenho interno; sua figura faz aparecer na tela mesma aquele que a suporta, enquanto sujeito que olha.

A personagem central é a Infanta Margarida que lança o espectador a uma segunda volta e nos faz ver o que está na tela que vemos do avesso, no cavalete: o próprio quadro. Corresponde, assim, à topologia da banda de Moebius, da estrutura do sujeito dividido entre a visão e o olhar, entre aquele que vê e o que é visto.

Sob as vestimentas claras e bem iluminadas da Infanta, situa-se o verdadeiro objeto em jogo no quadro: o olhar como a fenda das pálpebras, como a janela que o sujeito constitui espontaneamente ao abrir os olhos. Toda essa cena só se sustenta pela suposição do olhar do Outro, o casal real ao fundo que, por sua posição, nada vê. Sem esse olhar suposto do Outro nem o fantasma nem o desejo se fundam. A visão do Outro, em um espelho embaçado é, pela estrutura da obra, uma pura visão, puro vazio, um reflexo.

Essa construção leva o espectador a ver o quadro dando volta sobre si, que pode ser pensada como análoga à construção do fantasma em análise, na qual o analista está incluído como objeto a. A experiência analítica introduz um intervalo, uma escansão entre a janela subjetiva, que se institui ao abrirmos os olhos e a cena que se vê, pois o ideal de realização do sujeito é acoplá-los, como Magritte ilustrou na sua obra magistral “A condição humana”. Esse intervalo possibilita, enquanto vetor da direção da cura e de um final de análise, o advento do objeto a como causa, não sem entusiasmo.

Ao final de uma análise, podemos pensar que não só essa escansão seja efetivada, como o quadro do fantasma não esteja mais no cavalete, sendo construído, ou ainda preso à parede, oferecido sem cessar ao suposto olhar do Outro, que não existe; mas, sem mais assombrar, é deixado no chão.

O cross-cap é o suporte topológico possível a ser dado ao fantasma. É uma figura topológica heterogênea constituída por uma banda de Moebius e um disco, que podem figurar o sujeito e o objeto a. A operação do corte realizado no percurso de uma análise determina, de um lado, o campo do sujeito dividido e, de outro, o buraco onde se destaca o objeto a que, enquanto queda, seja causa.

Se seu esquema analítico é verdadeiro, afirma Lacan no seminário XXI, o objeto a é o que o analista deve vir a ser e é, também, o que ele deve fazer advir. É uma posição a ser sustentada enquanto semblant. Não podemos falar, portanto, em ser analista, mas em des-ser, pois ele é produzido enquanto queda, pelo dizer da verdade.  

Notas e Referências Bibliográficas

1 Publicado em Sexuação Sintoma Nominação. Revista da Escola Letra Freudiana, nº47.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3 LACAN, J. O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.40.

4 ———— Seminário, O objeto da psicanálise, lição de 1/06/66, inédito.

5 ———— O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Op.cit., p. 40.

6 FERREIRA, A. Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 523.

7 LACAN, J. Seminário, livro 12, Problemas cruciais para a psicanálise, lição de 16/06/65, inédito.

Bibliografia

FREUD, S. “Pegan a un niño”. In: Obras completas, vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1996.

LACAN, J. O seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

———— “El objeto del psicanálisis”. In: Reseñas de enseñanza. Buenos Aires: Ediciones Manantial, 1988.

———— “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

———— O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

———— Seminário, A lógica do fantasma, inédito.

———— Seminário, O ato psicanalítico, inédito.

———— O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

———— “Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines”. In: Scilicet 6/7. Paris: Éditions du Seuil, 1976.

PORGE, E. Voix de l’écho. Toulouse: Éditions érès, 2012.

SAFOUAN, M. Lacaniana, Les séminaires II, 1964-1979. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2005.