Escola Letra Freudiana Home Índice

Psicanálise no mundo?1

Márcia Jezler
Renata Salgado
2

A psicanálise, por sua via discursiva, é um laço social determinado pela prática de uma análise e visa uma mudança na economia de gozo do sujeito. É uma prática que parte do impossível de uma totalização de saber. Freud, em seu texto “O mal-estar na cultura”, situa o conflito dos seres falantes entre as exigências pulsionais e a cultura. O que advém desse conflito tem no supereu a causa da agressividade dirigida ao eu. O supereu, como mal-estar na cultura, é estruturante da condição humana e tem no mito do Édipo uma produção ficcional diante do impasse que o real invoca, é “uma tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura”.3

A leitura de Lacan é de grande importância no momento em que verificamos os imperativos da insaciável produção capitalista se aproximarem da mesma lógica dos imperativos do supereu freudiano. No capitalismo vemos uma tentativa, sagaz e acelerada, de encobrir o efeito de perda estrutural por meio da proliferação de objetos que rejeitam a castração.

Na atualidade, são incontáveis as incertezas, as inseguranças, as violências e manifestações de doenças que já representam um espetacular panorama traumático. Os princípios éticos, o imaginário social, as possibilidades de intervenções simbólicas ficaram abalados e mudaram os rumos e os sentidos da estética. A sedução, o horror, a ausência de luto, ingredientes da política do mercado e de consumo, produtores de sintomas, renegam, entre outras, a condição característica de todos os humanos. Frente a esses impasses sintomáticos, não teria a psicanálise, em sua prática e também no campo da cultura, cada vez mais lugar por ser capaz de questionar as atuais formas de gozo?

A cultura não só influencia a psicanálise enquanto prática discursiva e instrumento de intervenção como também se vê examinada por ela. A psicanálise é instigada a responder às formas atuais de existência sem fazer concessões à fantástica fábrica, prolífera e engenhosa do imaginário e do mercado de bens utilitaristas. Os ditos ‘novos sintomas’ são formas de pensar o corpo como máquina contemporânea. Negligência que deixa de fora as formações do inconsciente. Em sentido oposto, qualquer interpretação deve levar em conta uma orientação do real, daquilo que não caminha, “que atravessa o caminho [...] o que não cessa de se repetir para entravar a marcha. É o que sempre volta ao mesmo lugar”.4

Freud e Lacan mantiveram uma clara posição: não há uma visão de mundo que possa universalizar-se. Lacan afirma que o real não é universal e o mundo nada mais é que imaginário. Do mesmo modo, Freud considera qualquer concepção do universo um dos ideais dos homens. Ele aproxima a psicanálise da ciência por sua investigação no terreno psíquico, repudiando a possibilidade de conhecimento através da revelação, intuição ou adivinhação. Nem a arte nem a filosofia estariam para Freud em posição de disputar com a ciência qualquer poder. Somente a religião se apresentaria em suas funções nesta condição, a de satisfazer a necessidade de proteção do sujeito indefeso e débil – nesse ponto, a psicanálise se afasta tanto da religião quanto da ciência. A religião, por ser de origem divina e, portanto, elevada, não permite à ciência interferências. O pensamento científico, para Freud, aspira a uma coincidência com o mundo exterior real que é a verdade. Verdade que parece ao homem comum tão incapaz de ser superada quanto a morte. Vê-se que Freud não se engana quando aproxima a verdade da castração.

Para Lacan, os analistas e os cientistas estão confrontados ao real, mas em relação aos analistas diz que devem estar mais advertidos sobre a angústia. A posição do cientista é impossível tanto quanto a do educador, a do político e a do analista. O discurso do analista permite uma iluminação lateral aos outros discursos, mesmo sendo uma posição mais impossível do que as outras. Ocupa-se daquilo que não funciona, do que gira em círculo para impedir que as coisas andem. Se Lacan fala do real, é porque lhe parece a noção mais radical para enlaçar alguma coisa na análise. Não sem incluir aí o simbólico e o imaginário, pois o nó faz valer não mais o sentido, mas j’ouis sens (gozo-sentido, eu ouço sentido). O nó admite a errância e o objeto a é o que se apreende nessa junção do simbólico, do imaginário e do real.

No mundo pós-moderno, as noções tão caras a Lacan do objeto a e do nó borromeano trazem uma escrita do real diferente dos moldes acadêmicos ou científicos. Ele próprio diz que, de sua “topologia feita na enxada”, o progresso a ser esperado do inconsciente é o da censura. Isso porque o discurso universitário ampliava o seu domínio, sendo ainda um pouco mais obscuro que o discurso do mestre. Já o discurso histérico impulsiona a ciência quando obriga o mestre à produção de um saber. Entretanto, Lacan ressalta que nenhuma subversão é possível esperar do inconsciente que seja capaz de frear a ciência diante de seus conhecimentos, pois ela mesma serve de incremento ao capitalismo e dele se alimenta. Escreve o discurso do capitalista invertendo as posições das letras do discurso do mestre nos lugares do agente e da verdade. É o S1, o significante mestre no lugar da verdade que fica embaixo da barra, recalcado. Só que há uma inversão das setas, e, portanto, o lugar da verdade que deveria impulsionar o agente para operar os giros discursivos não se dá. O que decorre disso é uma interrupção dos giros produzindo, como efeito, sujeitos massificados, o que Lacan chama de universalização dos sujeitos.

É importante reconhecer as marcas do contemporâneo, mas não recuar diante daquilo que a psicanálise tem como instrumento: a palavra. Palavra que recorta o corpo e introduz aí o pensamento. Se o inconsciente depende da linguagem, do mesmo modo podemos dizer que o analista depende do real. Citando Lacan em “A terceira”:

o que há de picante, em tudo isso, é que seja do real que dependa o analista nos anos vindouros e não o contrário. Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão opor-se a ele.5

“Opor-se a ele” de modo a fazer valer o dispositivo de uma análise como saída da impotência para o sujeito que se perdeu da “técnica da arte de viver”6. Uma análise deve possibilitar que o inexorável do real se inscreva enquanto impossibilidade, fazendo obstáculo a qualquer idealismo. Se o sintoma é real, a interpretação como ato do analista opera pelo equívoco significante e permite a passagem da impotência à impossibilidade. O gozo fálico está fora do corpo, corpo que ex-siste ao real, mas apresenta-se enodado pela alíngua (lalangue). As histéricas com seus sintomas de conversão foram as primeiras a dar sinais de que o corpo é afetado pelas representações inconscientes pois, diante da angústia, o sujeito se vê reduzido ao corpo. Já os sujeitos obsessivos são aqueles que apresentam seus pensamentos carregados de afeto.

Às perguntas sobre ser homem ou mulher, concernentes ao sexo e sua contingência, o analista testemunha pela questão fantasmática e pelas tensões que isso gera. O sexo só acede ao discurso pela via do semblant, de onde o sintoma se esforça para fazer dois na sua inconsistência. Mas é pelo sintoma que a verdade pode surpreender pois estando embaixo da barra, ela possibilita os discursos, na medida em que faz agir o agente desses discursos.7 É pelo inesperado, pelo que pode surpreender que o sentido se reduz. Ir em busca da verdade é pura ficção. O saber inconsciente se funda a partir de uma falta e o analista se faz suporte disso, não podendo garantir nenhuma verdade. O saber em posição de verdade no discurso do analista faz com que dela só haja meio-dizer.

A psicanálise no mundo não poderia prescindir do real. Colocar à prova este real é do que deve se ocupar a psicanálise. Como diz Lacan: “é nessa articulação ao real que se encontra a incidência política onde o psicanalista teria lugar se fosse capaz.”8 Nos outros discursos, da mesma forma que no discurso do analista, não há relação entre a produção e a verdade. Essa impossibilidade pode conduzir a uma impotência, pois se define por uma barreira ao gozo, porque não há saber sobre o gozo. Do analista se espera algo mais: que o saber, acedendo ao lugar da verdade, possa dar provas de sua impossibilidade, transformando o sujeito no agente desse impossível. O analista ex-siste ao lugar do Outro, por isso, seu discurso distingue-se dos demais. O insabido é a marca de um saber não inscrito no Outro. Toda a complexidade dessa posição delimita o savoir y faire do analista. ‘Não há relação sexual’ assim como ‘não há Outro do Outro’ afirmam essa impossibilidade. É aí onde a Escola se faz necessária ao analista ao se propor como uma comunidade de experiência.

Na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”,9 Lacan afirma que o campo de extensão presentifica a psicanálise no mundo, faz laço social com a polis. Isso nos leva à prática da interlocução com outros campos de saber, como a literatura, as artes visuais, a filosofia...

Quanto à religião, ela visa curar os homens do sintoma, dando-lhe sentido e “esperanças a granel”,10 nos termos de Lacan. A exaltação da culpabilidade, para Freud, sempre foi efeito da cultura. A religião nomeia a culpabilidade de pecado e promete, pela confissão e pela fé, apaziguar os corações. “Amarás teu próximo como a ti mesmo” é a recusa mais evidente da agressividade que faz o supereu e leva o sujeito a odiar seu semelhante, mas não seu próximo do qual depende. Esse mandamento constitui-se como uma ilusão, pois prescinde de toda garantia real.

De sua parte, a filosofia estaria sempre instigando o amor à verdade. Está sempre visando o Um, que encobre o real. Para a psicanálise, não há como apreender a verdade do real. “O real não é, antes de tudo, para ser sabido.”11 O real é o próprio limite da verdade. A topologia explicita a fronteira entre o saber e a verdade, delimitando um campo.

Para que a psicanálise continue a produzir efeitos de discurso, é necessária a insistência do real tencionando a estrutura e produzindo um enodamento que permita a separação dos gozos. Em “A terceira”, Lacan nos adverte sobre a importância de se dar um lugar efetivo ao real. É interessante pensá-lo produzindo uma tensão que caberia ao analista sustentar na transferência; canalizar a angústia é uma dificuldade correlativa àquela de conjugar o sujeito e o real.

São muitas as formas atuais de tomar o corpo como máquina sem alma, visando uma fabricação de sentido. Os diagnósticos tentam fabricar sentido pela via das especialidades tecnológicas de última geração, dando a impressão de que os avanços científicos e a revanche religiosa estariam na esperança de alcançar o real pela representação. Não há saber sobre o corpo e é isso o que nos diz a psicanálise. A ciência e a religião ignoram o sujeito do inconsciente e seus efeitos, aqueles que a psicanálise recolhe de seu saber, saber furado, impossível de remediar.

Como poderíamos, então, pensar no destino do sujeito que é constantemente encorajado a ceder de seu desejo em benefício do mais-de-gozar produzido no saber de seu tempo? “Não ceder de seu desejo”12 é o mandamento ético lacaniano que faz resistir à mercantilização e produção em série não só dos objetos, mas também dos próprios sujeitos massificados, afirmando a divisão do sujeito.

E aqui concluímos: nem a ciência nem a filosofia, muito menos a religião, compartilham com a psicanálise da ideia de dar um lugar efetivo ao real. Tomá-lo não como tragédia ou fim, mas como pura afirmação e princípio, traz a marca da diferença que a psicanálise propõe como discurso, discurso que Lacan toma como um dispositivo pelo qual o real alcança o real.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em Do Real, o que se escreve? Revista da Escola Letra Freudiana, n.40.

2 Psicanalistas, membros da Escola Letra Freudiana.

3 LACAN, J. Télevision. Paris: Éditions du Seuil, 1974, p. 51.

4 LACAN, J. “A terceira”, tradução de Analucia Teixeira Ribeiro, inédito.

5 Idem.

6 FREUD, S. “Mal estar na civilização” in Obras completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, p. 101.

7 Cf. LACAN, J. O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

8 LACAN, J. “Radiofonia”, Centro de Estudos Freudianos do Recife, inédito, p. 33.

9 Cf. LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967” in Documentos para uma Escola, Revista da Escola Letra Freudiana, nº0, Rio de Janeiro, 1983.

10 LACAN, J. “A terceira”, tradução de Analucia Teixeira Ribeiro, inédito.

11 ———— “Radiofonia”, Centro de Estudos Freudianos do Recife, inédito, p. 37.

12 ———— O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 384.

Bibliografia

LACAN, J. Seminário A lógica do fantasma, inédito.

———— “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.