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Noli tangere matrem1

Claudia de Moraes Rego 2

“Ele me tortura”. A posteriori, percebo que essa frase, enunciada por um analisante em relação ao próprio analista para um terceiro, resume, de uma certa maneira, o campo de questões que pretendo abordar hoje. Traz-nos à memória a expressão de genuss que Freud descreve quando o Homem dos Ratos lhe pede que o libere de relatar o tormento dos ratos, ao que Freud responde: “Assegurei-lhe que eu próprio não tinha qualquer gosto por crueldade e cer­tamente não tinha desejo algum de atormentá-lo; contudo, naturalmente não podia conceder-lhe algo que estava além das minhas forças”3 e mais adiante: sua face assumiu uma expressão muito estranha e variada. Eu só podia interpretá-la como uma face de horror ao prazer todo seu do qual ele mesmo não estava ciente”4 e ainda: “repetidamente se dirigia a mim como ‘Capitão’ provavelmente porque no início da consulta eu lhe contara que eu próprio não gostava de crueldade como o Capitão N. e que eu não tinha intenção de torturá-lo sem necessidade.”5 A fala de um analisante, “Ele me tortura” evoca o sofrimento de Cristo na cruz e o apelo a seu algoz: “Pai, por que me abandonaste?”6 São Sebastião flechado, patrono da cidade, nada adâmico, caído do paraíso: o sujeito assediado. Ferenczi, que identifica o trabalho do analista a um trabalho de carrasco, escreve em seu diário íntimo, iniciado com uma nota sobre a insensibilidade do analista, dirigindo-se a Freud: “O senhor não acredita em mim! Não leva a sério o que lhe comunico. Não posso admitir que fique aí sentado, insensível e indiferente, enquanto eu me esforço por representar algo de trágico da minha infância!”7

Tudo sobre o que Freud nos fala é isso. Há uma perda de gozo vivida como sofrimento e enunciada como queixa. A civilização é erigida à custa de uma perda de gozo e isso é lei e produz um mal estar, uma nostalgia. O holocausto parece ter sido pensado por Lacan como um momento em que a fantasia sadeana de uma utopia de civilização onde não haveria perda de gozo, ganha uma nova e monumental edição que se esboroa numa fragorosa “queda da asa”.8 Esse termo é usado por Lacan em “Kant com Sade” para descrever como o projeto do gozo sem limite já nasce fadado à derrota. Esse texto foi escrito e proposto como prefácio (e recusado) à primeira edição oficial das obras de Sade em francês, em 1962. Com esse gesto, essa encampação de Sade, Lacan assume que a psicanálise pode se propor a pensar a ética e a política. Nessa época, um mundo devastado pela Segunda Guerra Mundial está às voltas com a necessidade de reinventar um novo humanismo que leve em conta a questão do mal. Ao proceder a uma inversão no discurso do mestre que constitui o discurso do capitalista.

Lacan reconhece que ali há uma promessa de suspensão dessa perda de gozo através da ligação entre o sujeito e o objeto a, aqui encenado em miríades de objetinhos inanimados, numa manobra não sangrenta, mas igualmente hipnótica. É a colocação em discurso da perversão; o sujeito reunido ao a, sem losango que o impeça, $a. O discurso do capitalista é um mantra men­tiroso e perverso: “você nunca mais vai ficar sem...”; “agora você nunca mais fica sozinho”. Ilusionista. Bem diferente do discurso analítico que vem de mãos vazias, sem nenhuma aparência, sem nenhum objetinho fetichizável. A ética da psicanálise se contrapõe à política entendida como administração e gerência de bens. Vemos então que há um ataque perverso ilusionista que pretenderia superar o mal-estar na civilização. E por que não tentar? O mágico, por um momento, no olhar do crédulo, vira crente de sua própria magia. E aí estamos na outra ponta do inesgotável esforço subjetivo de unir-se a das Ding. a fantasia.

A arquitetura do texto “Kant com Sade” é precisa: interessa a Lacan o a priori kantiano na medida em que reconhece aí o seu grande Outro e lhe interessa em Sade a submissão do sujeito à lei da natureza, lei não do desejo, mas do gozo. Ao articulá-los, Lacan demonstra o que falta a Kant: o objeto que aparece em Sade. Segundo Vladimir Safatle, num interessante texto inti­tulado “O ato para além da Lei", "Kant com Sade deve ser lido como sintoma maior do impasse da racionalidade intersubjetiva no interior da clínica psicanalítica. A ênfase na intersubjetividade como programa passa a ser criticada no seminário A transferência: “A intersubjetividade não seria aquilo que é o mais estranho ao encontro analítico? Ali, basta que ela apareça para que fuja­mos, certos de que é preciso evitá-la. A experiência freudiana estanca desde que ela surge. E floresce apenas na sua ausência.”9 O sujeito se relaciona não com outro sujeito, mas com o objeto a. Na crítica a Kant, cuja razão prática é uma teoria da intersubjetividade, com a qual esteve identificado, Lacan utiliza Sade e Antígona como argumento para falar de um desejo puro, que não se satisfaz com nenhum objeto do mundo e um ato para além da lei, na fantasia sadeana.

Lacan reconhece na fantasia (literária) sadeana o fundamental da estrutura da fantasia do falante: o masoquismo primário fundador da divisão subje­tiva – o objeto a, essa pequena parte separada do corpo, 'parte extra partes’, tortura o sujeito.

Voltemos à máxima sadeana, que na verdade foi enunciada por Lacan, para melhor examiná-la: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode me dizer qualquer um, e exercerei este direito sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”. Ao sancionar, como um legislador, o direito ao gozo que nenhuma sociedade jamais garantiu ao sujeito, Sade dá à sua máxima o caráter imperativo de uma lei moral.

“Pode me dizer qualquer um” indica que o sujeito ouve a máxima proferida pela boca de um Outro, é uma voz, podendo ser até uma voz no rádio. Só esse Outro tem liberdade, é uma vontade absoluta de gozo, a voz da natureza. Desse modo, Lacan nos revela que o carrasco, o agente, é apenas um instrumento, um cumpridor de ordens, apático.

Em 1960, Adolf Eichmann é sequestrado em Buenos Aires e levado para Jerusalém. Seu julgamento começa em abril de 1961 e Eichmann é condenado e enforcado em maio de 1962. Hanna Arendt estava lá a serviço da revista The New Yorker e produziu uma série de reportagens reunidas em 1963 no livro Eichmann em Jerusalém, mesmo ano da publicação de Kant com Sade, na revista Critique. Arendt relata que Eichmann declarou ao tribunal que sempre havia vivido segundo os preceitos morais de Kant e sua definição de dever. Interrogado, para espanto geral, Eichmann revelou ter lido a Critica da razão prática. Escreve Hanna Arendt: “Eichmann deu uma definição quase perfeita do imperativo categórico: ‘O que eu quis dizer, com minha menção a Kant, foi que o princípio da minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no principio de leis gerais’.”10 Evidentemente, Eichmann está mais para Sade do que para Kant, como ele próprio reconhece, ao admitir que, a partir do momento em que é encarregado de levar a cabo a Solução Final, deixara de viver segundo os princípios kantianos. Comenta Hanna Arendt: “Ele distorcera seu teor para: 'aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador', ou, na formulação de Hans Frank, para o ‘imperativo categórico do Terceiro Reich’, que Eichmann deve ter conhecido: “Aja de tal modo que se o Führer souber de sua atitude a aprove.”11

O carrasco precisa de sua vítima: é sua angústia, seu medo, sua crença em seu poder que o fazem gozar. A máxima sadeana tem a estrutura do materna da fantasia: $<>a, elementos que se encontram também no discurso do analista:

Em “Kant com Sade”, Lacan mostra o esquema da fantasia sadeana onde vemos a $. Há uma analogia com o discurso analítico: para que haja uma psicanálise, é necessário um sujeito que sofra. E a indiferença ou abstinência de compaixão ou solidariedade do analista em relação a seu sofrimento é da mesma ordem da apatia sadeana. Mas o analista não goza com a divisão do outro, embora o analisante suspeite que sim, como Ferenczi. Enquanto o mestre sadeano tira proveito do sofrimento da vítima, a estratégia da análise, ao apontar a divisão e renunciar ao gozo, visa a que o analisante possa vir a se descolar de seu gozo produzindo S1. É a santidade que Lacan atribui ao analista.

Passemos agora à máxima de Lacan: ‘Não ceder quanto ao desejo’ e à pergunta que deveria verificar o respeito à esta máxima: “Agiste conforme o desejo que te habita?”12

Observemos, em comparação com a máxima sadeana, que o centro da questão ética se desloca do gozo para o desejo. A lei é a lei do desejo e não do gozo sem limites. Nesta distinção entre desejo e gozo, a fantasia tem um papel importante: é ela que, com suas restrições e particularidades (aqui não, aqui sim, assim não, assim sim), tempera o gozo, tornando possível o prazer. O desejo é puro, desejo de nada, desejo de morte, desejo de gozo. A fantasia o tornará propício ao prazer. O desejo aparece como uma defesa, proibição de ultrapassar um limite no gozo.13 No “Projeto para uma psicologia científica” e depois, em “Além do princípio do prazer”, Freud deixa isso claro: Eros liga, faz Bindung, para retardar a descarga perigosa e prolongar a vida.

A máxima proposta por Lacan marca a psicanálise não como uma tera­pêutica, mas como uma ética. É com essa ética que devemos julgar nossos atos. Mas aí nos deparamos com o impossível da tarefa. Ora, se o desejo é puro, será possível avaliar se agimos em conformidade com nosso desejo? E ainda, se o sujeito não se reconhece em seu ato, como verificar se este está em conformidade com o desejo?

A máxima de Lacan não é uma afirmação, é uma pergunta a posteriori sobre a ação do sujeito. É a indicação de uma direção. Qual seria a resposta? “Eu tentei, mas não sei dizer se consegui”. E uma ética de desejo e não de gozo. “O gozo deve ser recusado para que possa ser atingido na escala invertida da lei do desejo”,14 isto é, como prazer.

Afinal, a fantasia sadeana tem um limite que n’ A Filosofia na alcova não é ultrapassado. Trata-se do assassinato da mãe. Mme de Mistival, mãe de Eugénie, a aluna aplicada, é inoculada com o 'veneno’ da sífilis e tem, em seguida, seus órgãos genitais costurados. Lacan entende que, sob o disfarce de um pretenso assassinato, na verdade a mãe é interditada. Não podemos deixar de anotar aqui o fato de que Lacan não escreve a palavra verolée (sinônimo de sifilítica) por extenso, apenas a abrevia: ‘v...ée. Freud, da mesma maneira, em carta a Fliess, escreve em latim matrem nudam, para não se aproximar demais, na língua, da mãe. Escreve Lacan: “Dolmancé... encerra o assunto com um noli tangere matrem. V...éeé costurada, a mãe continua proibida. Está confirmado nosso veredito sobre a submissão de Sade à lei”.15 Proponho uma tradução alternativa dessa frase, em lugar de nada toca a mãe’, nada alcança a mãe. Recordo aqui a última frase de “A divisão do ego”. Escreve Freud: “...é como se... em todo esse vai e vem entre rejeição e reconhecimento fosse todavia a castração que encontrasse a expressão mais clara.”16

Castração e desejo de se religar a um ponto de real original que define o destino do falante: tentar sempre, mesmo avisado de sua impossibilidade, fazer da causa o objetivo final.

Em “Juventude de Gide”, Lacan cita um episódio, relatado por Nietzsche, de um monge em Nápoles sacudindo o crucifixo e gritando: “Aqui, o verda­deiro Polichinelo!”17 Esclareço que o Polichinelo é um antiquíssimo personagem cujas origens remontam ao teatro latino e que alcança maior desenvolvimento na commedia dell 'arte' italiana, caracterizado pelo nariz longo, corcunda, barriga grande, barrete e roupas multicoloridas, e fala tremida e esganiçada. O feitio moral do polichinelo varia de país para país; o francês é falsamente heroico e fanfarrão; o alemão, tolo; o inglês, astuto e sinuoso. No sentido figurado diz-se de um homem apalhaçado e sem dignidade, palhaço.18

É uma figura do sujeito, o assediado. Em seguida, Lacan se pergunta: “Como saber, dentre todos os mágicos, quem está com o verdadeiro polichi­nelo?” Essa frase acentua que os mágicos tentam convencer a tola plateia que alguém detém o verdadeiro polichinelo. Segundo C. Millot, o talento perverso seria essa habilidade particular de usar um poder que não é humano para conseguir o milagre, o único que valeria: transformar o sofrimento em gozo e a falta em plenitude. Em “Kant com Sade”, Lacan se pergunta se o discurso perverso que, como vimos antes, se assemelha ao discurso do capitalista em sua promessa de por o objeto na mão do sujeito, desafia o discurso analítico. Essa é uma questão importante que certamente pode ser trabalhada sob vários aspectos. Eu gostaria de destacar apenas um: para Sade, o desejo e a lei são antinômicos. No discurso analítico, desejo e lei são a mesma coisa; “lei e desejo são a única e mesma coisa, é justamente o que Freud descobriu”.19 Portanto, o discurso do gozo se confronta sim com o discurso analítico. Mas quem o desafia é a psicanálise em sua política: sustentar a falta-a-ser.

Notas e Referências Bibliográficas:

1 Publicado em Política e Psicanálise, efeitos d’Escola. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 44.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3 FREUD, S. “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”. In: Obras completas, vol. X. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, pp. 170-171.

4 Ibidem.

5 Ibidem.

6 Mateus 27:46. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus Editora, 1997, p. 1893.

7 FERENCZI, S. Journal clinique, p. 43, Paris, Payot, 1983.

8 LACAN, J. “Kant com Sade” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988 Escritos, p. 784.

9 ______ O seminário, livro 8, A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 19.

10 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011, p. 153.

11 Ibidem, p. 155.

12 LACAN, J. O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Op. cit. p. 376.

13 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011, p. 153.

14 Ibidem, p. 841.

15 LACAN, J. “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”. In: Escritos. Op. cit., p. 841.

16 FREUD, S. “A divisão do eu no processo de defesa”. In: Obras completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, p. 312.

17 LACAN, J. “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 775.

18 BUARQUE DE HOLANDA, A. Novo dicionário da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fron­teira, 1986, p. 1588.

19 LACAN, J. “Kant com Sade” In: Escritos. Op. cit., p. 802.

Bibliografia

MARQUES DE SADE, A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2003.

MILLOT, C. Gide, Mishima et Genet: intelligence de la perversion. Paris: Gallimard, 1986.

SAFATLE, V. “O ato para além da lei”. In: Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Editora UNESP, 2002.