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Psicanálise e desejo perverso1

Sérgio Luiz Silveira Gondim 2

A perversão é efetivamente algo de articulado, de interpretável, de analisável, e exatamente do mesmo nível que a neurose. No fantasma, disse-vos, encontra-se localizada, fixada, uma relação essencial do sujeito com o seu ser. Pois bem, enquanto que na perversão o acento se coloca no a, na neurose coloca-se sobre o outro termo do fantasma o $.3

Poucos são os casos de perversão publicados. Consta nas Atas da sociedade psicanalítica de Viena a apresentação, efetuada por Freud em 11 de março de 1914, de um caso de fetichismo de pé. Ainda que sucinto, o texto é particularmente rico na reconstrução da gênese do fetiche, bem como nas articulações teóricas concernentes à perversão. O caso, diz Freud, foi tratado brevemente e sem sucesso. No texto “O fetichismo”, de 1927, também se encontra registrada, de forma reduzida, a apreciação de Freud sobre a análise de um fetichista.

Situado como vontade de gozo por Lacan, o desejo perverso traz dificuldades no que se refere ao dispositivo analítico uma vez que, nas perversões, trata-se de lidar, na especificidade dessa estrutura, com o lugar que o sujeito ocupa, com a singular maneira com que lida com a angústia e com sua posição frente à castração. Não obstante, Lacan em seus seminários e escritos faz referências ao tratamento desses casos e sustenta uma análise possível.

O desejo em Freud é inconsciente, não se apaga, insiste de forma perene e repetitiva. Indestrutível, este é o estatuto do desejo na psicanálise. A proposta de trabalhar o desejo perverso se coloca à medida que é possível situá-lo em relação a um fantasma e não como um desejo entre outros. Para falar de desejo faz-se necessário falar da castração. Não há desejo sem castração. Ela está em sua fundação e representa uma perda.

A castração é um momento lógico onde o sujeito se depara com a falta no Outro. Segundo Tolipan: “a percepção da criança de que a mãe não tem o falo, entra em choque com a crença anterior – a de que o Outro é completo.”4 Neurose e perversão se distinguem em função das saídas que cada sujeito apresenta quando confrontado com essa falta. Na neurose, a Verdrängung (recalque) vai incidir sobre a representação e na perversão a Verleugnung (desmentido) incidirá sobre a percepção. Recalque e desmentido atuam sobre materiais diferentes. Contudo, Freud assinala a existência do recalque na perversão. No texto “O fetichismo”, ao falar da recusa da criança em perceber a ausência do pênis na mulher, afirma que: “a mais antiga palavra de nossa terminologia psicanalítica, recalque, já se relaciona com esse processo patológico.”5 Mais à frente faz-se uma distinção entre a vicissitude da representação e do afeto na perversão. Diz Freud:

se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da representação daquela do afeto, e reservar a palavra Verdrängung [recalque] para o afeto, então a palavra alemã correta para a vicissitude da representação seria Verleugnung [desmentido].6

Observemos que, nesse texto, Freud marca dois momentos distintos. No primeiro, o desmentido incide sobre a percepção. No segundo, diferencia o destino do afeto daquele da representação e desta forma, assinala a participação do recalque na perversão.

Na neurose, o que se efetua como recalque da representação leva em conta dois tempos – o recalque originário e o propriamente dito. Conforme Saliba, no segundo há uma

desvinculação entre Afeto e Representação. A Representação que poderia colocar o intolerável em cena é afastada, empurrada para o lado. Formam-se substitutos: sintomas, fantasias, lapsos, chistes que testemunham a re-união disfarçada destes elementos desvinculados.7

Na perversão, temos que levar em conta o recalque originário. No que se refere ao recalque propriamente dito, as coisas se passam de forma diferente. Diante da ameaça de castração, o perverso vai criar um substituto. O mecanismo que se instaura no tempo lógico relacionado ao Édipo é o desmentido. Este incide sobre a percepção de que a mulher não tem um pênis. Quer dizer, a criança ao perceber que a mulher não tem o pênis, não rejeita essa ideia. Aceita-a assim como mantém a crença anterior de que a mulher possui um pênis. A operação comporta a contradição de a um só tempo a mulher ter e não ter o pênis. As duas atitudes contraditórias frente à percepção da ausência do pênis da mulher (mãe), reconhecimento e desmentido, convivem lado a lado sob recalque. O retorno será uma formação de compromisso, pela substituição, que traz a marca do desmentido sob a forma de um fetiche. O resultado é uma profunda divisão do sujeito. O fetiche é o substituto ao pênis faltoso da mulher (mãe) e simboliza a proteção sobre a ameaça de castração. É o troféu que lembra o triunfo sobre ela e também o herdeiro do interesse dirigido ao pênis da mulher na primeira infância. Resta na perversão, em virtude de seu mecanismo, uma oscilação por parte do sujeito, entre as atitudes de reconhecimento da castração, e seu contrário. A participação do recalque na perversão tem essa particularidade, de apresentar no retorno do recalcado, o selo do desmentido através de um substituto.

Freud traz como exemplo o caso de um homem que, educado na Inglaterra, depois vai residir na Alemanha e esquece quase totalmente a língua materna, o inglês. Na análise desse sujeito a condição do fetiche estava elevada a certo “brilho no nariz”. A origem desse fetiche vinha de sua primeira infância e não deveria ser compreendida em alemão: Glanz auf der nase (brilho no nariz) e sim em inglês: Glance at the nose (olhar sobre o nariz). O brilho do nariz era na verdade um vislumbre do nariz. Freud arremata o parágrafo dizendo: “o nariz constituía assim o fetiche, que, incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível aos outros”.8 Como diz Valas: “Freud valoriza, portanto, um verdadeiro chiste translinguístico, com a consequência sintomática em que ele implica.”9 Ele segue dizendo que: “o objeto (aqui, o fetiche) é apenas o objeto reencontrado por suas coordenadas simbólicas (Glanz auf der nase) memorizadas sob forma de traços (glance at the nose) no inconsciente.”10 Com este caso Freud atesta a existência do recalque na perversão, à medida que se trata do recalque e do retorno do recalcado sob a forma de um fetiche. O mecanismo da criação do fetiche é especifico da perversão, embora dele participe o recalque.

Tanto perversão quanto neurose apontam uma posição subjetiva específica ligada à travessia do Édipo. A diferença entre essas duas estruturas não deve ser procurada nos atos, nem nas encenações, mas referida a uma outra cena. Diante do enigma do desejo do Outro, o sujeito responde com a produção de um fantasma. O que sustenta o desejo é o fantasma, adverte Lacan. O fantasma na neurose e na perversão não é o mesmo. Neurótico e perverso estão situados em relação ao desejo de formas distintas.

A escritura do matema do fantasma $ <> a foi produzida por Lacan no seminário As formações do inconsciente. Na neurose trata-se de um sujeito dividido, em conjunção/disjunção com um objeto para sempre perdido. No fantasma o sujeito se faz coisa sujeitada ao desejo do Outro. A tentativa do neurótico é ser aquilo que obtura a falta, ao preço de se oferecer como objeto de desejo do Outro, não sem que este mecanismo falhe e traga a angústia. Oferecer-se como objeto do desejo do Outro é sempre masoquista. No entanto não se trata, aqui, de perversão e sim de neurose.

A posição do perverso é outra e encontra-se formulada no texto “Kant com Sade” através do matema do fantasma perverso. Extraído dos textos de Sade, o matema não se escreve sem que se leve em conta a obra de Kant. Trata-se de uma estrutura dividida em quatro termos e encerra uma lógica que articula a posição singular de objeto que o perverso ocupa:



É do lugar de objeto, e para uma vontade de gozo ‘dominando todo o assunto’, que o perverso a fim de provocar no Outro a emergência de uma divisão do sujeito, faz vibrar a angústia do lado de suas vítimas.

A posição singular do perverso frente à castração vem colocar uma questão quanto à divisão subjetiva. O sinal dessa divisão é a angústia e sua prova, nesses casos, é buscada no Outro. A manobra perversa vai fazer com que a angústia sempre apareça do lado de seus parceiros. É imprescindível que ela se apresente assim. Sua posição de objeto visa essa angústia, mas a angústia de que se trata aqui, é a angústia do Outro. Segundo Vidal, é deste lugar de “objeto-dejeto que se propõe tampar a falta do Outro [...] e, nessa posição, capturar o gozo”.11 Isso equivale a dizer que, nas cenas, em quaisquer das perversões, o perverso se coloca no lugar de objeto a – embora de forma denegada – buscando a angústia do Outro. Para ilustrar, tomemos o sadismo e o masoquismo. O masoquista crê que ele busca o gozo do outro ao se colocar como objeto desse gozo, mas o que lhe escapa é que ele quer fazer aparecer a angústia do lado de seus parceiros. No sadismo a angústia é condição para a cena. O sádico busca o sofrimento em suas vítimas, mas o que ele não sabe é que no cumprimento de seu ato, ele faz aparecer a si próprio como objeto, à medida que na cena, ele é o instrumento que bate, fere e tortura. Assim, tanto o sádico quanto o masoquista, neste jogo de ocultação, onde angústia e objeto passam a primeiro plano, localizam-se como objeto e, buscando a angústia em seus parceiros, visam na verdade a angústia do Outro.

A manobra descrita acima é realizada para uma vontade de gozo que Lacan, no seminário A angústia, vai nomear como desejo perverso. O termo vontade de gozo é uma referência ao imperativo categórico kantiano, incondicional e universalizante, que situa o desejo como um dever. A vontade de gozo é também o que, unindo sob a forma de um véu, permite escolher o que fará o sujeito da razão prática, o sujeito kantiano que exclui tudo que é pulsão ou sentimento, com o sujeito patológico, sujeito que “pode padecer em seu interesse por um objeto”.12

Seguindo mais uma vez Freud, no texto “O fetichismo”, podemos situar a vontade de gozo, imperativo incondicional, como desmentido da castração. O substituto é o que mantém, num só golpe, a crença de que a mulher tem e não tem um pênis. Não se trata, nos casos de perversão, de primeiro reconhecer a castração e depois negá-la. É justamente a particularidade de ser a um só golpe – reconhecimento e negação – o que caracteriza a Verleugnung como o mecanismo próprio da perversão. Este é o imperativo que precisa se manter no cerne da questão perversa quanto à castração e que se apresenta como vontade de gozo. Manobra que pode ser situada no matema do fantasma perverso entre $ e S “ao nível da flecha $ ¯ S que põe em jogo ao mesmo tempo a falta ($) e um prazer referido ao falo enquanto ele não falta (S)”.13

Manobra é artifício, trama. A manobra perversa parece em sua descrição ser bem sucedida. Artifício eficiente através do qual o perverso se livraria da angústia e escamotearia a castração. É interessante pensar que tanto a vontade de gozo quanto o fetiche têm relação com a falta. O termo vontade de gozo “evoca a reunião do que ele divide”14 e o fetiche evoca a função do véu. Se há necessidade de reunião ou véu, é porque há necessidade de encobrir a divisão ou a ausência. Vale também sublinhar as palavras usadas por Lacan no seminário A angústia para falar do masoquismo e do sadismo: “há também alguma coisa que o masoquista não vê.”15 Ainda falando sobre o masoquista: “o que lhe escapa [...] é [...] o que ele busca.”16 Quanto ao sádico: “[o] que se esconde atrás desta busca da angústia do Outro é, no sadismo, a busca do objeto a.”17 Lacan acrescenta: “o que ele não sabe é o que ele procura [...] fazer aparecer a si mesmo como puro objeto.”18 Mantendo a um só golpe o reconhecimento e a negação da castração, mesmo assim, o perverso: ‘não vê’, ‘algo lhe escapa’, algo ‘se esconde’. Na perversão há um ponto onde o sujeito não sabe, algo é alheio ao sujeito da ação. Após esse breve percurso, que vai do fetiche e da vontade de gozo às palavras de Lacan, podemos pensar que algo da divisão se faz presente na perversão, divisão que embora escamoteada, apresenta-se na própria cena atestando o fracasso da manobra?

Esse trabalho não é conclusivo. Contudo, após atravessar os textos de Freud e os de Lacan, parece que a angústia aponta uma possibilidade de intervenção nesses casos. A angústia é o afeto que não engana e como o perverso não está sempre em cena, não consegue livrar-se dela de uma vez por todas. Esta se fará presente fora das cenas, suscitando o insuportável do objeto que deveria faltar. Não seriam esses momentos, ocasião privilegiada para uma análise? O despudor da descrição das cenas terá como objetivo situar a angústia do lado do outro – o analista. Nesses casos, como na neurose, não ceder diante da angústia parece ser o essencial. Por um lado a manobra perversa não se repetiria do mesmo modo, à medida que ali o analista não se angustiaria, e, por outro lado, uma pergunta sobre a angústia poderia ser endereçada, desta feita, àquele que fala. A direção nestes casos não seria livrar o sujeito de seu fetiche. Freud lembra que os fetichistas raramente tomam seu fetiche como sintoma que causa padecimento e até sentem-se felizes pelo uso dele na vida amorosa. Trata-se, talvez, de situar o sujeito frente à sua angústia, para que, a partir daí, possa aparecer algo da castração e da não existência da relação sexual.

Notas e referências bibliográficas:

1 Publicado em O campo do gozo. Revista da Escola Letra Freudiana, nº 37.

2 Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.

3. LACAN, J. Shakespeare Duras Wedekind Joyce. Lisboa: Assírio e Alvim, 1989, p. 79.

4. TOLIPAN, E. “A travessia do fantasma e final de análise” in 1, 2, 3, 4 número, transferência, fantasma, direção da cura, Revista da Escola Letra Freudiana, nº 1/4. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1993, p. 128.

5. FREUD, S. “O fetichismo” in Obras Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, p. 179.

6. Ibidem, p. 180.

7. SALIBA, A. M. P. “O recalque mora ao lado” in Oficina, Minas Gerais, nº1, 1989, p. 31.

8. FREUD, S. “O fetichismo” op. cit., p. 179.

9. VALAS, P. Freud e a perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 89.

10. Ibidem, p. 90.

11. VIDAL, E. “Masoquismo originário: ser de objeto e semblante” in Pulsão e gozo, Revista da Escola Letra Freudiana, nº 10/11/12. Rio de Janeiro: Dumará Distribuidora de Publicações, 1992, p.140.

12. LACAN, J. “Kant com Sade” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.778.

13. STEVENS, A. “Uma carta” in Clínica da perversão. Revista Brasileira do Campo Freudiano, nº 4/5, Salvador, Editora Fator, 1991, p. 170.

14. LACAN, J. “Kant com Sade” in Escritos, op. cit., p. 786.

15. LACAN, J. A angústia, lição de 16/01/63, inédito.

16. Ibidem, lição de 27/02/63.

17. Ibidem, lição de 13/03/63.

18. Ibidem, lição de 16/01/63.

Bibliografia:

ANDRE, S. A impostura perversa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

FREUD, S. “Um cas de fétichisme du pied” in Les premiers pshychanalystes – Minutes de  la societé psychanalytique de Vienne, sessão de 11 de março de 1914, vol. IV. Paris: Éditions Gallimard, 1983.

GUYOMARD, P. O gozo do trágico – Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

KAROTHY, R. Pontuaciones de escritos: Kant com Sade, seminário apresentado na Escuela Freudiana de Buenos Aires, Buenos Aires, 1996, inédito.

LACAN, J. O seminário, livro 4, A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

______ O seminário, livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

______ O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.